A luta de classes ferve na América Latina

António Abreu - 20 Nov 2019

O imperialismo norte-americano acentuou uma acção global contra regimes que tinham garantido importantes conquistas na América do Sul, mas os povos de vários países levantaram-se e não desistem de mudanças

 Em poucas semanas, o imperialismo norte-americano acentuou uma acção global contra regimes que tinham garantido, com os seus povos, importantes conquistas na América do Sul. Essa acção, presente há muito neste continente, foi também uma reacção a progressos e afirmações políticas das forças de esquerda neste período. Mas os povos de vários países, com regimes de direita e ligados a oligarcas, a grupos de indústria extractiva, com bandoleiros contratados para o crime político, levantaram-se e não desistem de mudanças que melhorem as suas condições de vida, a democracia e a participação efectiva nela dos cidadãos, que resistem aos desastres ambientais que multinacionais promovem.

 Na Bolívia, as imagens que nos chegam são de grande violência de grupos de direita contra as pessoas que protestam contra o golpe e querem o regresso de Morales e das liberdades. A 6 de Novembro a presidente da câmara de Vinto foi assaltada, cortaram-lhe o cabelo, agrediram-na e simularam o seu estrangulamento, derramaram sobre ela tinta1. E tudo isto, invocando Deus e Jesus Cristo!… Estas milícias estão ligados a movimentos pentecostais reaccionários armados.

 A 11 de Novembro, já depois de Evo Morales ter renunciado, queimaram as casas do presidente e de seus familiares, bem como as de dirigentes dos partidos que os apoiam e de ministros.

 Evo acabou por sair do país e pedir asilo ao México. Fê-lo em declaração que a nossa imprensa, rádios e TV ignoraram no seu significado. É que, depois de ser pressionado pelo chefe da polícia e das forças armadas para resignar, Evo fê-lo para evitar um banho de sangue contra os populares e que o atingiria necessariamente a ele e família.

 É preciso chamar a isto golpe de estado, denunciar os seus autores e quem está por detrás deles (latifundiários, banqueiros, grandes meios de comunicação social, capital estrangeiro norte-americano e europeu).

Golpe de estado consumado na Bolívia

 Os governos de Evo Morales governaram para o povo, o qual em 67% é constituído por povos originários do território. Apesar de que a grande burguesia, os milionários, os proprietários do latifúndio, da banca, dos grandes media e o grupo terrorista liderado por Luís Fernando Camacho, não quererem convívio nem melhoria das condições de vida destes 67%. Até estão acantonados numa região luxuosa e super-moderna, Santa Cruz de la Sierra.

A eles não terá agradado que nos governos de Evo Morales de 2006 a 2019:

- tenha sido recuperada a soberania, perdida depois da revolução de 1952;

- tenha, por isso, sido recuperado o direito indígena a reescrever a sua história;

- se tenham nacionalizado os hidrocarbonetos para os respetivos rendimentos chegarem ao povo;

- a economia cresceu em media 4,9%;

- a pobreza e a pobreza extrema tenham descido significativamente;

- as pensões tenham sido aumentadas;

- foi decretada a soberania alimentar;

- foi reduzido o analfabetismo de 13,3 para 2,4%;

- a mulher teve um acréscimo grande de acesso à vida profissional e política;

- a Constituição passou a considerar o estado boliviano como multinacional, multiétnico e multicultural.

 É claro que os «brancos» de Santa Cruz de la Sierra queriam ser os exclusivos beneficiários destes recursos… Por isso fizeram o golpe de estado de que são figuras de proa o candidato derrotado contra Evo, Carlos Mesa, e o chefe de um bando terrorista, já referido, Camacho, que tem uma ficha policial nutrida que o liga inclusivamente aos Panama Papers. Mas na Bolívia, e noutros países latino-americanos, os quadros intermédios e superiores das polícias e forças armadas, sofreram décadas de formação militar e ideológica nas escolas militares dos EUA, Panamá e Brasil, para servir os grandes proprietários e esmagar as revoltas e resistências, sendo por isso compreensível que Camacho não esteja na cadeia e estejam lá, sim, dirigentes sindicais e outros apoiantes do Movimiento Al Socialismo (MAS).

 Já antes, em 22 de Outubro, face à iminência de tentativas de golpe, em La Paz, a Central Obrera Boliviana (COB) e a Coordenadora Nacional pelo Cambio (Conalcam) resolveram, numa reunião extraordinária na Casa Grande del Pueblo, declarar estado de emergência e de mobilização pacífica nacional em defesa da democracia.

 Antes da espera pela contagem final dos votos na primeira volta, sabendo que era provável que o seu candidato não conseguisse ir à segunda volta, sectores da oposição começaram a falar de uma suposta burla na contagem dos votos e alguns países da União Europeia (UE) e os EUA credibilizaram tal afirmação, passando depois todos a achar necessário que se realizasse a segunda volta. Da mesma forma interveio a Organização dos Estados Americanos (OEA) – organismo protegido por Washington – aceitando novas eleições, propostas por Evo antes mas nessa altura rejeitadas.

 Segundo dados do organismo de estado eleitoral na Bolívia, Morales tinha na quarta-feira, 23 de Fevereiro (a contagem é muito lenta), 46,49 % dos sufrágios, enquanto que o seu opositor, Carlos Mesa, tinha 37,01 %.

 A violência passou a atingir activistas do MAS, de Evo. Há reacções. A polícia cai sobre os manifestantes com violência.

 Assumiu a presidência interina da República a deputada ultra-direitista Jeanine Añez, não tendo sido designada para o efeito uma outra deputada que a antecedia na linha de sucessão e que não se demitira nem tinha visto essa questão apreciada pelo Congresso.

 Añez disse que Evo seria preso se regressasse à Bolívia!!!

 Os dirigentes das organizações filiadas na COB e na Conalcam denunciaram acções violentas, racistas e antidemocráticas com que grupos de extrema direita procuram agitar o país, denunciando que grandes empresas estão a recrutar mercenários entre os seus trabalhadores para integrarem milícias de combate.

 O bom desempenho dos governos de Evo Morales traduziram-se na reapropriação do gás natural e petróleo para defesa dos interesses nacionais e não será por acaso que este golpe também tem a pegada do Lítio, elemento essencial para o fabrico de baterias eléctricas, capazes de potenciar a mudança da energia baseada no carbono. Estes dois elementos mais a exploração da água doce são seguramente objecto de contratos de concessão a oferecer aos EUA e seus aliados.

 Na Argentina a eleição em Outubro de Alberto Fernandéz para a presidência, por uma larga margem de votos (48 para 40%) reflecte a reacção popular a uma degradação de vida crescente. Com uma inflação de quase 38% acumulada desde o início do ano e o peso a perder cerca de 70% do seu valor, o anterior presidente Macri desenvolveu um plano de austeridade, associado ao empréstimo de mais de 5,7 mil milhões de dólares que beneficiou apenas grupos de especuladores financeiros, grandes empresas dos sectores de serviços e agropecuários.

 Macri, actual presidente, conservador bem de direita, grande empresário, oriundo da construção civil, que venceu a última eleição, em 2015, contra o candidato da corrente de esquerda, a que se tem chamado kirchenerista (corrente peronista de esquerda que fez eleger como presidentes, sucessivamente, o marido e mulher deste casal, Nestor e Cristina Kirchner, que completaram mandatos de 12 anos entre 2003 e 2015), já tinha sido derrotado antes desta eleição, pelos trabalhadores e um amplo leque social, em sucessivas manifestações de envergadura não só em Buenos Aires.

 No Uruguai, em Outubro, não houve eleição à primeira volta, e haverá uma segunda volta, uma vez que o candidato apoiado pelo governo, da Frente Ampla de Esquerda, Daniel Martinez, não conseguiu ser eleito à primeira volta, obtendo 40,52%, tendo o segundo candidato, Luis Lacalle Pou, da direita, ficado com 29,77%.

 No Chile, desde há meses sucederam-se enormes manifestações e passaram a chegar-nos notícias da grave escalada da repressão, contra a ampla e legítima mobilização dos trabalhadores e povo chileno, contra as medidas anti-sociais e política antinacional do governo de Sebastián Piñera. Internacionalmente os dedos voltaram a apontar e condenar firmemente a instrumentalização de actos de violência e as sinistras medidas de excepção e militarização da vida política – num país que conserva bem viva a memória da brutal ditadura fascista de Pinochet. A solidariedade internacional também chegou, como aconteceu entre nós com o PCP.

 O governo falou de guerra e o povo respondeu enchendo em vagas e ruas do país. Mais de um milhão em Santiago e todo o Chile levantaram-se contra o modelo económico imposto por Piñera e o agravamento das desigualdades dele decorrentes. O verdadeiro «modelo chileno» que deve ser aplicado, não ignorando que os donos dos grupos económicos vitais para a vida dos chilenos são apoiantes de Piñera e da antiga ditadura militar, tem que ter em conta a necessidade de cumprir com a necessidade de vencer a crise económica e elevar o poder de compra da população, evitando os boicotes na distribuição e a manipulação dos preços.

 O modelo de um país durante a ditadura, hoje é questionado por milhões que pedem mudanças de fundo.

 Também em Outubro, o Haiti comemorou, no dia 17, a passagem de 213 anos sobre o assassinato de Jean-Jacques Dessalines2, depois de quase dois meses de manifestações massivas de grande parte da população, que exigem o desenvolvimento da vida em Porto Príncipe, no meio de uma forte repressão por parte de militares.

 Os protestos iniciaram-se a partir do recrudescimento da crise energética que gerou falta de abastecimento de combustível, e o consequente encarecer dos preços a nível nacional, num país em que 70% da população vive em pobreza extrema.

 Em Outubro já eram neste ano cerca de 80 de acordo com relatos dos organismos de direitos humanos, com destaque para o assassinato do jornalista haitiano Nehemie Joseph em 10 de Outubro em circunstancias muito obscuras. Foram encerradas várias emissoras independentes no meio de denuncias de pressões por parte do governo e dos sectores empresariais ligados ao sector energético.

 Foi neste estado de descontentamento, que em 16 de Outubro entrou em vigor a nova Missão das Nações Unidas, a chamada BINUH, que vem substituir a sua antecessora, la MINUSTAH, numa continuação da política de ingerência que continua a pôr em causa a autodeterminação dos povos, numa intervenção em que não conta com a participação numa intervenção dos actores sociais e políticos do país

 No Brasil o regime golpista de Bolsonaro tem sido fustigado por vagas de fundo contra as suas políticas neoliberais e a saída de Lula da cadeia é um golpe sério no projecto golpista.

 Este projecto vem de há muito. Passou pelo arregimentar do poder judicial contra os anteriores governos, pelo incrível impeachment de Dilma Rousseff e pela prisão sem provas de Lula que, ficando sem efeito, não deixou já de pretender impedir uma sua futura candidatura.

 O povo brasileiro tem pela frente o encargo de conseguir reunir a mais ampla frente possível capaz de levar de vencida a extrema-direita.

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  1. Patrícia Arce Guzmán, a presidente da câmara de Vinto, com risco da própria vida, enfrentou com coragem e dignidade a turba de linchadores que a assaltava: «sou livre e não me vou calar, e se querem matar-me que me matem, mas por este processo de mudança [no original proceso de cambio, como é chamado o processo político boliviano desencadeado em 2005 por Evo Morales], como disse um dia, dou a minha vida».
  2. Escravo que dirigiu o sangrento processo de independência do país (1 de Janeiro de 1804), em relação à França de Napoleão e foi o seu primeiro presidente. Preso antes pelos franceses, a quem infligiu sucessivas derrotas até à batalha final de Verteres (1802), tratou os colonizadores com requintes de malvadez que atingiram os militares franceses, tal como estes tinham tratado os escravos.

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[Artigo tirado do sitio web portugués Abril Abril, do 18 de novembro de 2019]