As guerras económicas também matam

António Abreu - 12 Dec 2019

Está no ADN das grandes potências capitalistas, mas não no das políticas externas de países com regimes progressistas, de esquerda, e da generalidade de potências mais ou menos emergentes, recorrer a boicotes, sanções e bloqueios económicos

 Quase todos os dias serviços noticiosos em todo o mundo falam da «guerra económica entre os EUA e a China». Objectividade? Nalguns casos, sim. Mas em geral o que pretendem é criar uma expressão que apareça como mais um facto consumado que condicione, pela convicção como é brandido, o nosso futuro colectivo. E que dê algum verniz de credibilidade ao desempenho de muitos comentadores e analistas.

 É claro que, já não tão frequentemente, tais serviços referem os muitos casos de sanções económicas a países que vêem as suas economias destroçadas e as respectivas populações mergulhadas em profundas carências que a administração norte-americana até aproveitará, com umas ONG financiadas pela USAID – de facto dirigidas pela CIA – para provocar revoltas contra os governos alvo dessas sanções.

 Na actualidade, os EUA e algumas potências indefectíveis na vassalagem que lhe prestam, sustentam tais agressões contra um significativo número de países. Alguns destes governos, por vezes, têm em conta os interesses de grupos económicos que os sustentam para não embarcarem necessariamente nelas.

 Está no ADN das grandes potências capitalistas, mas não no das políticas externas de países com regimes progressistas, de esquerda, e da generalidade de potências mais ou menos emergentes, recorrer a boicotes, sanções e bloqueios económicos.

O sistema injusto criado em Bretton Woods

 Outras guerras com «dignidade», mais institucionalizada em tratados internacionais, começaram logo com a criação, pelos EUA, do sistema de Bretton Woods, depois da guerra, sistema que tem assentado em duas instituições.

 Por um lado, o Banco Mundial, através do qual os Estados Unidos criaram um sistema de empréstimos para outros países em dólares e não nas moedas nacionais, o que, em vez de ajudar a financiar o seu desenvolvimento, apenas financiava a sua dependência. Enquanto se apropriava de recursos desses outros países para financiar as suas despesas militares com guerras, construção de bases militares e instalação de sistemas de mísseis, por exemplo.

 O Banco Mundial, em vez de financiar a construção de infra-estruturas que ajudassem ao desenvolvimento dos países, financiava empresas multinacionais envolvidas na extracção de minerais, petróleo e gás.

 Por outro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) emprestava apenas nos casos em que as moedas nacionais estavam em crise. Apoiava os ricos a transferir o seu dinheiro da moeda local, com altas taxa de câmbio para o dólar. Depois fazia cair a taxa de câmbio e o país ficava com grandes dívidas, sendo que para o FMI qualquer país pode pagar qualquer volume de dívida sem limite, desde que empobreça a força de trabalho, reduzindo salários e impondo a austeridade.

 O FMI ia assim fazendo crescer a prosperidade americana à custa da austeridade, da queda dos padrões de vida, da queda dos investimentos públicos nos países credores.

 As guerras da Coreia e do Vietname e outras agressões elevaram os deficits da balança de pagamentos dos EUA com todos esses gastos militares a serem cobertos não pelos EUA, mas pelos outros.

 Com a muito elevada acumulação de ouro nos seus cofres, os EUA condicionaram os preços do ouro no mercado e mantiveram o dólar vinculado ao ouro. Sendo o dólar a moeda forte de referência, os outros países viram-se impedidos de financiarem as suas economias com o seu próprio dinheiro e limitaram os respectivos gastos internacionais pelo acesso ao dólar ou ao ouro. Os EUA recearam sempre perder esta vinculação ao ouro porque deixariam de poder criar limites artificiais para gastos de outros países, que poderiam deixar de estar sujeitos à pobreza.

 Os chamados programas de estabilização do FMI foram na realidade programas de desestabilização.

 E quando os países já não tinham recursos para pagar a dívida, a receita seguinte era que pagassem a dívida privatizando as infra-estruturas públicas, vendendo todos os monopólios naturais, que os países mantinham no domínio público há centenas de anos (exploração mineral e de petróleo, transportes públicos, portos e aeroportos, todo o sistema eléctrico, etc.).

 Não apenas os minerais e o petróleo, mas o sistema de transporte, o sistema eléctrico, especialmente os portos, os aeroportos, tudo o que era público deveria ser vendidos para pagar a transferência de capitais para os mais ricos.

 E naturalmente a fuga de capitais, de que os mais ricos beneficiaram, foi sendo judiciosamente canalizada para enclaves bancários offshore que foram criados pelo governo dos EUA por volta de 1964, quando a Guerra do Vietname estava a provocar uma enorme crise na balança de pagamentos. O Departamento de Estado, face à escassez das poupanças já garantidas, foi rápido em identificar uma sua bem conhecida camada com uma taxa de poupança mais alta que qualquer outra – a camada envolvida no crime, como os traficantes de drogas, o crime organizado, os que fogem aos impostos e os funcionários corruptos dos aparelhos dos estados.

 Os novos offshores deveriam ser muito parecidos aos já instalados no Panamá e na Libéria para o sector de petróleo e passaram a multiplicar-se no Caribe. A Inglaterra fez a mesma coisa. Assim, os Estados Unidos estabeleceram ilhas do Caribe sem impostos, sem perguntas, pequenos panamás, pequenas libérias. E no caso da Inglaterra, as ilhas do Caribe Britânico declararam independência e, em seguida, elas reverteram a sua independência para que pudessem fazer parte da área inglesa, usar libras esterlinas e serem isentas de qualquer câmbio ou desvalorização da moeda.

 Rapidamente, os bancos americanos e britânicos estabeleceram filiais nessas ilhas, que eram ilhas muito pobres. «Passivos estrangeiros» passou a ser a designação dos depósitos que os EUA lá tinham. Passivos estrangeiros nos próprios bancos… E, assim, os criminosos, os traficantes de drogas, os cartéis de cocaína, todo o tipo de autores de falcatruas colocaram o seu dinheiro nos bancos dessas ilhas. As filiais nas ilhas dos bancos de Nova York emprestaram esse dinheiro às respectivas sedes, e esse dinheiro ficou isento de reservas porque era estrangeiro e, portanto, era uma fonte de capital muito barata dos bancos americanos. Foram realmente os Estados Unidos que organizaram a fuga de capitais do mundo para os centros bancários offshore e o papel do FMI foi apoiar o dólar e apoiar a fuga de capitais de outros países para o dólar americano.

 O FMI chamou a esta sua intervenção um sucesso dos Partners in Development (Parceiros no Desenvolvimento), quando o que fez foi agir para subdesenvolver muitos países, desequilibrá-los, torná-los enclaves de exportação e, nessa «parceria», forçar a redução do preço da mão-de-obra e essencialmente a privatização e redução do domínio público, iniciando em todo o mundo o que, até então, só Margaret Thatcher fizera na Inglaterra.

 Vários distintos economistas norte-americanos, e não só, que trabalharam nestas instituições ou em ligação com elas, acabariam por denunciar os objectivos de ambas. As empresas mediáticas e os jornalistas, supostamente interessados na investigação, quase não lhes deram voz, preferindo optar pela reprodução das posições do Banco Mundial e do FMI, não referindo, para ganho de alguma «credibilidade», os nomes dos seus autores.

Sobre o ouro

 Os EUA defrontam o facto de o banco central da Rússia ter sido, nos últimos anos, o maior comprador de ouro. E de este país e a China continuarem a ser os países que mais acumulam ouro. Isso coloca em causa a vinculação exclusiva do dólar ao ouro.

 Mas também nos países da União Europeia (UE), nomeadamente em Portugal, não foram acauteladas as reservas de ouro nem foi valorizada a alta probabilidade de ocorrer uma crise económica mundial, a curto prazo, eventualmente mais forte que a de 1929/30.

 Como Carlos Carvalhas salientou, em artigo no AbrilAbril de 24 de Outubro passado, «foi baseado em tal crença que, por exemplo, o Banco de Portugal, contra as objecções e protestos do PCP, procedeu a sucessivas vendas de ouro. Não havendo crises e com a estabilidade e “solidariedade” da União Europeia (UE) para quê guardar o ouro como valor de reserva e não o substituir por divisas que davam mais rendimento?».

As derrapagens do neoliberalismo na UE

 A crise de 2007 e 2008 fez tremer as certezas não fundamentadas de uma certa camada de académicos e de analistas que delas beberam.

 Mas mesmo quando já era evidente que as dívidas privadas e públicas comprometiam as previsões de crescimento futuro, a UE, numa primeira fase, recusou a renegociação das dívidas com redução das taxas de juro e dos valores a pagar e prazos mais dilatados para o efeito. Fê-lo sob pressão dos grandes bancos alemães e franceses e de fundos de aplicações financeiras. Acentuaram-se desequilíbrios e os trabalhadores, camadas intermédias e os reformados, conheceram mais dificuldades.

 As dívidas passaram, numa segunda fase, a ser «reestruturadas», segundo Carlos Carvalhas, seguindo uma projecção da política de Draghi, assente no quantitative easing das injecções de liquidez, seguidas de quebras das taxas de juro que viabilizaram a valorização de activos, a capitalização e desendividamento de bancos, e para alguns países, como Portugal, a troca de dívida com maiores taxas de juro por dívida com prazos alargados e menores taxas de juro. Tudo sem haver redução da dívida.

 As injecções de liquidez e as baixas taxas de juro não se têm estado a traduzir na aceleração significativa do investimento. Mantendo a lógica do «Pacto de Estabilidade», saldos primários orçamentais positivos impedem o investimento produtivo, debilitando-nos ainda mais no quadro de uma crise mais devastadora.

 Estes têm sido outras formas de saque de rendimentos, outras formas de guerra económica.

A contestação crescente a um sistema injusto

 Desde o início deste século, todas estas situações passaram a um estado muito mais elevado de contestação e, a partir de um conjunto dos maiores países emergentes, passaram a surgir iniciativas como a criação dos BRICs, as novas rotas da seda, com a construção pela China de importantes redes de infra-estruturas em vários continentes, o comércio regional entre países que nele passaram a não utilizar o dólar, a própria consideração do dólar como única moeda de referência da economia mundial foi posta em causa.

 Os EUA romperam com a até então defendida liberdade comercial e abertura dos mercados. A pujança económica e comercial da China começou, porém, a contestar-lhes a liderança. Trump ganhou as eleições – como poderá ganhar as próximas – invocando os interesses do agro-negócio e indústria internos, incluindo o desenvolvimento de tecnologias digitais em que se atrasaram significativamente e em que, no conjunto, as importações da China passaram a pesar muito nos mercados norte-americanos.

 A China reagiu de forma muito forte à criação de taxas alfandegárias pelos EUA sobre importações do estrangeiro que a atingiam em especial. Se há «guerra comercial» com a China foram os EUA a declará-la, mas face às dificuldades em não sair muito chamuscado da refrega, será do seu próprio interesse a reconversão da «guerra» através de acordos com a China.

 Depois da muito provável derrota do seu impeachment e a confirmação dos eventuais envolvimentos perigosos de Joe Biden e do seu filho nas teias da corrupção que suportavam o anterior presidente ucraniano, Poroshenko, Trump não perderá a oportunidade para reverter tais acordos no seu próximo interesse para as eleições que se avizinham. Bem como não perderá a oportunidade também de fazer a China sofrer campanhas contra ela desencadeadas nos últimos dias (casos de Hong-Kong, dos centros de reeducação para os militantes «pró-democracia» ou nos brinquedos com substâncias cancerígenas importados da China…).

 Por outro lado, sectores mais retrógrados em matéria de relações externas dos EUA têm procurado boicotar todas as iniciativas do presidente que possam ter alguns aspectos positivos na distensão internacional, mas tal é encarado como negativo por grande número de eleitores.

O movimento de desdolarização do comércio mundial

 Os EUA defrontam também o facto de muitos países se estarem a afastar do dólar como moeda de reserva, depois de este ter vindo a perder confiança em todo o mundo pelo facto de ser usado como uma arma política para impor restrições.

 No que respeita à Rússia, esta decidiu já há algum tempo reduzir o papel do dólar no comércio internacional, à medida que as tensões entre Washington e Moscovo se acentuam. A mudança faz parte de uma estratégia para «desdolarizar» a economia russa e reduzir a sua vulnerabilidade à ameaça contínua de sanções por parte dos EUA. Mas, embora o banco central tenha conseguido despejar rapidamente metade de suas participações em dólares no ano passado, o progresso no comércio tem sido lento devido ao uso arraigado do dólar em muitas transacções. E particularmente em relação ao comércio do petróleo não é possível – para já – fazer essa mudança.

 A participação de euros nas exportações russas aumentou pelo quarto trimestre consecutivo às custas da moeda americana, segundo dados do banco central. A moeda comum europeia quase ultrapassou o dólar no comércio entre a UE e a China, e o comércio de rublos com a Índia aumentou. O euro, no ano que está a acabar, chegou quase a substituir o dólar como moeda de escolha para as exportações russas para a União Europeia, com sua participação subindo para 42% no primeiro trimestre, contra 32% no ano anterior.

 A Rússia ainda depende do dólar em mais de metade de seu comércio anual de 687,5 mil milhões de dólares, embora menos de 5% desses acordos estejam com a motivação dos EUA. A vontade da Rússia para mudar deve-se a que as empresas sofrem atrasos em até um terço dos pagamentos internacionais em dólares porque as empresas ocidentais precisam verificar com os EUA se as transacções são permitidas!...

 A participação do euro também aumentou no comércio anual de 108 mil milhões de dólares da Rússia com a China, saltando para quase mais de um terço dos acordos de exportação no primeiro trimestre, a partir de quase nada no início de 2018. Essa mudança, que abrange vendas de ‘commodities’ e grandes contratos estatais, foi acelerada pelo desenvolvimento da infra-estrutura de pagamentos no banco central e em outros credores.

 Já o comércio em yuans é difícil por causa de restrições de capital que limitam o acesso de estrangeiros a activos chineses.

 O valor mais assinalável regista-se no comércio de 11 mil milhões da Rússia com a Índia. O rublo representou três quartos do total da liquidação das exportações entre os dois mercados emergentes, depois de ambos terem concordado num novo método de pagamento, por meio das suas moedas nacionais, para acordos de defesa de vários milhares de milhões de dólares.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Abril Abril, do 2 de decembro de 2019]