As repúblicas de bananas voltam à América Latina

Antonio Luiz M. C. Costa - 18 Abr 2017

O ciclo atual de golpes também começou na América Central, com o golpe de 2009 contra Manuel Zelaya em Honduras, com apoio do Pentágono e do Departamento de Estado, então liderado por Hillary Clinton. Mesmo na ausência de uma disputa pela hegemonia mundial, o mero desvio do modelo neoliberal foi considerado motivo suficiente para intervir no continente

A América Latina voltou a ser a terra dos golpes de Estado, é preciso concluir.  Tanques rolando suas esteiras sobre as avenidas principais não fazem mais parte do figurino, mas em suas novas roupagens midiáticas, legislativas e jurídicas se tornaram tão comuns quanto nos anos 1960 e 1970.

 Embora ainda não haja corrido sangue na mesma proporção, seus efeitos sobre o progresso social, o desenvolvimento econômico e a credibilidade das instituições e na democracia são igualmente nocivos.

 O ciclo de golpes da segunda metade do século XX, claramente associado à Guerra Fria, começou com a intervenção da CIA na Guatemala de 1954, sob as ordens de Dwight Eisenhower, contra o presidente Jacobo Arbenz.

 O ciclo atual também começou na América Central, com o golpe de 2009 contra Manuel Zelaya em Honduras, com apoio do Pentágono e do Departamento de Estado, então liderado por Hillary Clinton. Mesmo na ausência de uma disputa pela hegemonia mundial, o mero desvio do modelo neoliberal foi considerado motivo suficiente para intervir no continente.

 Uma ordem secreta de prisão preventiva contra o presidente partiu da Suprema Corte com a alegação de “traição à pátria” ao insistir em uma consulta popular (não vinculativa) sobre a possibilidade de reeleição.

 Na madrugada, o presidente foi não detido, mas sequestrado pelo Exército e forçado a embarcar em um avião para a Costa Rica, com escala na base estadunidense de Soto Cano para reabastecimento, enquanto muitos de seus partidários eram espancados, torturados, desaparecidos ou encarcerados ilegalmente.

 Oito anos depois, Honduras é uma demonstração de autoritarismo, crime organizado e retrocesso democrático. Os golpistas de 2009, dos partidos Liberal e Nacional (conservador), garantiram-se com intimidação, manipulação dos resultados eleitorais, compra de votos, cooptação de deputados eleitos pela oposição de esquerda, controle do judiciário e aliança com o crime organizado.

 Porfirio Lobo, o conservador eleito após o golpe e a interinidade do liberal Roberto Micheletti, recebeu doações de narcotraficantes, recebeu-os na sua festa privada da vitória e teve um dos filhos preso em 2015 pela agência antidrogas dos Estados Unidos.

 A taxa de homicídios saltou de 60,8 por 100 mil em 2008 para 81,8 em 2010 e 91,4 em 2011, e dezenas de jornalistas e ativistas de oposição tornaram-se vítimas. O caso mais rumoroso foi o assassinato em março de 2016 da ambientalista Berta Cáceres, planejado por especialistas da inteligência militar do governo, treinados nos EUA.

 O terceiro presidente do golpe, o também conservador Juan Orlando Hernández, prepara sua reeleição. A mesma Corte Suprema que em 2009 julgou a tentativa de permitir a reeleição uma “traição” declarou “inaplicável” em 2015 o artigo que a proibia, sem emenda constitucional ou consulta popular alguma.

 Honduras, desde o estabelecimento em suas terras das plantações da infame United Fruit (atual Chiquita Brands) em 1924, é a origem da expressão “república das bananas”, mas o que tem acontecido em outros países latino-americanos desde então não é muito diferente.

 O Paraguai, alvo seguinte da nova geração de golpes, presenciou em 2012 o mesmo tipo de manobra da noite para o dia contra o então presidente Fernando Lugo, dessa vez com o pretexto de uma desocupação violenta na qual morreram 6 policiais e 11 camponeses sem-terra. Em 24 horas, sem respeito aos trâmites legais, a Câmara abriu um processo de impeachment por incitação à violência e o Senado o destituiu.

 A maioria dos votos foi do Partido Colorado (conservador), herdeiro da ditadura de Alfredo Stroessner, com apoio de seu inimigo histórico, o Partido Liberal, aliado de Lugo na eleição presidencial, mas insatisfeito com seu papel reduzido no governo.

 Assim como seu congênere hondurenho, forneceu o interino Federico Franco, mas no ano seguinte a eleição entregou o poder a Horacio Cartes e aos conservadores, aos quais pertencia, salvo por esse breve interregno, desde 1946. Os EUA apressaram-se a reconhecer o golpe, embora a OEA o condenasse e vários países sul-americanos rompessem relações até o fim do mandato de Franco.

 À parte os retrocessos sociais imediatos, a herança do golpe de 2012 é o cinismo político e a desmoralização das instituições democráticas e republicanas, como mostraram os eventos da sexta-feira 31. No Paraguai, a reeleição, consecutiva ou não, foi proibida pela Constituição de 1992, resultado do trauma dos 35 anos de Stroessner, mas os partidários de Lugo e de Cartes – ambos impossibilitados de disputar a eleição de abril de 2018 – se uniram para autorizá-la.

 Previsivelmente, o Partido Liberal é contrário e tinha a seu lado as normas – emenda similar fora rejeitada em agosto de 2016 e não poderia ser reapresentada antes de um ano – e o presidente liberal da casa, Robert Acevedo, que não admitia violá-las.

 Os senadores da esquerda e dos conservadores fizeram uma reunião fechada ao público não no recinto do Senado, mas nas dependências da Frente Guasú de Lugo, elegeram para o cargo de Acevedo o vice-presidente do Senado, colorado Julio César Velázquez, alteraram o regulamento e aprovaram a emenda na ausência de Acevedo e da oposição. Na Câmara, onde os conservadores controlam a mesa e a maioria, a ratificação estaria assegurada.

 Dizer que foi irregular é um eufemismo: foi um golpe descarado, no qual a esquerda embarcou na esperança de reverter o igualmente flagrante golpe de 2012. Provavelmente ingênua, pois não há mais garantias para Lugo em um segundo mandato do que houve no primeiro.

 Os liberais, centro político, ficaram enfurecidos e incitaram protestos violentos, com cerca de mil pessoas, que culminaram com o incêndio do prédio do Congresso. A repressão não só os atingiu na rua e fez 30 presos e 211 feridos, como os perseguiu até dentro da sede do Partido Liberal, onde balas de borracha vitimaram uma liderança da Juventude Liberal, Rodrigo Quintana.

 O presidente Cartes reagiu inicialmente culpando os “bárbaros”, mas a força da reação acabou por obrigá-lo a demitir o ministro do Interior e o chefe da polícia e a Câmara a adiar a votação, à espera de uma mesa de diálogo para o qual o Vaticano ofereceu mediação.

 A desintegração das normas em uma sucessão de golpes e contragolpes também descreve o quadro da Venezuela. Desde o fracasso do golpe de 2002, a direita venezuelana mostrou pouca disposição de acatar normas, à espera da oportunidade de impor sua vontade unilateralmente.

 Enquanto contou com o apoio popular e a maioria da Assembleia Nacional, o governo chavista lhe fez frente com relativa facilidade, mas a crise econômica e de liderança após a morte de Hugo Chávez levou à eleição de uma Assembleia de maioria absoluta direitista, que nem por um momento cogitou negociar.

 Seu primeiro movimento foi golpista, uma tentativa ilegal de destituir Nicolás Maduro com uma absurda alegação de “abandono do cargo”, seguida pela paralisação da atividade legislativa. Ao mesmo tempo, a oposição tentou reunir assinaturas para um referendo para revogar o mandato do presidente. Seria o caminho constitucional apropriado, mas o Conselho Eleitoral, de maioria chavista, o inviabilizou.

 Ante o bloqueio legislativo, a Suprema Corte, também chavista, declarou suspensos os poderes da Assembleia por desacatar suas decisões, a começar por aquela que impugnara três dos deputados antichavistas. Seria mais um golpe, mas Maduro e a Corte voltaram atrás, ainda que deixando nas mãos do governo a aprovação de leis petrolíferas consideradas urgentes. A oposição insiste, porém, em que o “estado de golpe” não pode ser anulado.

 O secretário-geral uruguaio da OEA, Luis Almagro, já trabalhava para suspender e sancionar a Venezuela com apoio da Assembleia e ganhou mais um argumento. A Bolívia, na presidência do Conselho Permanente ao qual caberia abrir o processo, o suspendeu. Mais um golpe: os demais se reuniram à sua revelia e o aprovaram.

 Se a Venezuela será condenada é outra questão: é necessária uma maioria de dois terços e apenas 20 dos 34 membros são favoráveis. Além dos bolivarianos, também as pequenas ilhas do Caribe que receberam ajuda petrolífera da Venezuela estão dispostas a apoiá-la – a menos, talvez, que o outro lado lhes ofereça mais.

 O Equador, no qual também houve uma tentativa fracassada de golpe em 2010, durante o qual o Congresso foi ocupado e Rafael Correa teve de ser resgatado por militares fiéis, parecia estar em melhor caminho. Ao contrário de outros bolivarianos, Correa não insistiu em mais um mandato e abriu caminho a seu ex-vice Lenín Moreno.

 A campanha foi renhida, com acusações ao governo de ter recebido propinas da Odebrecht e ao oposicionista Guillermo Lasso de ter fraudado correntistas de seus bancos e desviado dinheiro para uma rede de empresas em paraísos fiscais.

 Como indicava a maioria das pesquisas, o governo venceu por margem reduzida, 51,2% a 48,8%, uma polarização semelhante à vista na maioria das eleições latino-americanas recentes. Como igualmente se tornou costume, a oposição neoliberal derrotada não se conforma com o resultado, exige recontagem e ameaça iniciar uma insurreição. É mais um passo no desgaste das próprias normas civilizatórias e a se continuar nessa direção, a violência aberta e os regimes de força declarados acabarão por retornar sem disfarces.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro Carta Capital, do 15 de abril de 2017]