CETA: o comércio «livre» ao serviço das multinacionais

Miguel Viegas - 19 Xan 2017

O CETA, acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Canadá começou a ser negociado em 2009, sob o mais rigoroso secretismo. Ao contrário do TTIP, outro acordo actualmente em fase de negociação entre a Comissão Europeia e os Estados Unidos, que tem suscitado muita discussão e muita luta, o CETA não foi objecto de debate durante a fase de negociação

Importa contudo clarificar que, se a discussão do TTIP passou para o debate público, isso deve-se a uma fuga de informação que revelou um conjunto de documentos comprometedores que imediatamente fez levantar um coro de protesto por toda a Europa. Assim não aconteceu com o CETA. Desta forma, foi com este profundo défice democrático que a Comissão Europeia apresentou no início de 2016 a versão definitiva do acordo, com as suas 1600 páginas. Não surpreende por isso, que os protestos e as mobilizações de inúmeras pessoas, partidos, sindicatos, associações diversas e até parlamentos nacionais e regionais, tenham surgido apenas nesta fase terminal do processo, uma vez que todos foram completamente arredados das negociações e do conhecimento prévio do conteúdo do Acordo.

 O comércio internacional não constitui um fenómeno recente. David Ricardo, eminente economista inglês do século XVIII, já tinha identificado as chamadas vantagens comparativas do comércio internacional, usando o célebre exemplo das trocas de vinho do Porto lusitano por produtos têxteis ingleses. Largas centenas de acordos bilaterais e multilaterais de comércio foram já negociados nas mais variadas regiões do globo. Importa por isso perguntar o que diferencia este CETA dos anteriores e por que razão tem suscitado tanto debate e tanta luta por parte das populações e de amplos sectores produtivos. Uma resposta possível passa pela análise da evolução do sistema capitalista e da sua necessidade de adaptar a super estrutura institucional por forma a consolidar o seu domínio e limar qualquer entrave à concentração capitalista e ao domínio económico imperialista.

Um avanço qualitativo no comércio internacional

 O mundo está hoje completamente dominado por algumas centenas de mega-empresas e grupos multinacionais por onde passa a maioria dos fluxos comerciais e que são também responsáveis pela esmagadora maioria do investimento transnacional. A necessidade de encontrar estruturas, acordos ou instituições acima dos estados nacionais que possam velar pelos seus interesses e ajudar a vencer eventuais resistências dos trabalhadores e dos povos no âmbito nacional representa um elemento fundamental que nos dá pistas para compreender o alcance deste acordo.

 No preâmbulo do CETA, são salientadas duas preocupações de fundo: eliminar tarifas aduaneiras e limar as chamadas barreiras técnicas ou regulamentares. Sob uma retórica não inocente, procura-se alimentar a necessidade de eliminar encargos meramente administrativos que oneram os produtos e dificultam o comércio internacional, omitindo deliberadamente a natureza e as causas destas ditas barreiras regulamentares. Como ficará claro mais à frente, estas existem não por qualquer capricho deste ou daquele país ou região, mas sim para defender legítimos interesses nacionais, ou para defender direitos sociais, laborais, de segurança alimentar ou ainda de saúde pública. Ao procurar eliminar estas normas, ou nivelá-las por baixo, a Comissão Europeia revela o seu completo desprezo pelo direito dos estados nacionais de decidirem a melhor forma de garantir o bem-estar das populações e dos trabalhadores. Importa referir que esta questão das normas regulamentares representa a pedra de toque do acordo, uma vez que as tarifas aduaneiras ou já não existem ou são muito baixas. Desta forma, o acordo CETA não é apenas mais um acordo de comércio, com o estabelecimento de pautas aduaneiras comuns ou de quotas de importação e exportação. Pela sua natureza, pelos seus objectivos e pelo seu conteúdo, o CETA assume-se como um tratado com valor constitucional na medida em que estabelece princípios e órgãos institucionais acima dos governos, destinados a concretizar estes mesmos princípios. Em traços gerais, o tratado prevê duas grandes instituições. A primeira tem a ver com a cooperação regulamentar. Tendo em conta a complexidade das matérias e as dinâmicas próprias da economia e da produção, estão previstos vários organismos (fórum para a cooperação regulamentar, comités específicos sectoriais, etc.) encarregados de forçar a harmonização, revendo naturalmente em baixa todo o acervo regulamentar seja ele de cariz social, laboral, ambiental ou higieno-sanitário. Nestes organismos, para além dos tecnocratas habituais, terão igualmente voz várias organizações, e por essa via, a presença assídua dos grandes lobbies industriais de ambos os lados do Atlântico. O mecanismo de resolução de litígios (o conhecido ISDS) destinado a funcionar como um órgão arbitral acima dos estados nacionais representa outra pérola deste tratado. Pese embora as alterações de cosmética introduzidas na fase final em resposta aos protestos generalizados que se fizeram sentir ao longo do corrente ano, este mecanismo mantém todos os seus poderes para proteger os interesses das multinacionais, colocando assim o lucro destas empresas acima da soberania dos estados e do bem-estar dos seus cidadãos.

 Em suma, sob a capa de um acordo de comércio chamado de «livre comércio», o que este CETA representa é um instrumento de novo tipo, ao serviço do capital, capaz de cercear a soberania dos estados e o direito dos povos de definirem as políticas em função do seu interesse e do interesse dos seus países. Ou seja, a palavra «livre», sempre associada a este tipo de acordos, significa verdadeiramente a liberdade de explorar, de dominar e de submeter estados e povos aos interesses do grande capital transnacional.

Consequências mais nefastas do acordo

 O CETA abrange praticamente todos os ramos da economia e da sociedade. Por isso o seu alcance é enorme. Para ilustrar esta ideia, basta referir o princípio da «lista negativa» que prevalece em todos os capítulos e anexos. Ou seja, nestas listas refere-se os domínios que ficam fora do acordo, ficando subjacente a ideia de que tudo o resto passa a ser abrangido. Não é possível neste artigo tratar todos os sectores. Por isso, apenas trataremos dos serviços públicos, do sector agroalimentar e dos direitos dos trabalhadores, deixando de fora sectores importantes que aqui não cabem devido aos constrangimentos de espaço.

 Os serviços públicos constituem um exemplo paradigmático da retórica ilusionista da Comissão Europeia e dos defensores do acordo. Dizem-nos que os serviços públicos estão salvaguardados. Contudo, ao ler os termos do acordo, o que é dito no respectivo capítulo é que ficam de fora os serviços públicos fornecidos em regime de monopólio público ou estatal, e ainda por cima, sujeito a uma lista negativa extremamente limitada. Ou seja, temos por um lado uma situação em que a esmagadora maioria dos serviços públicos foram já privatizados ou funcionam num lógica de concessão, ficando por isso abrangidos pelo CETA que obriga a abertura dos chamados mercados públicos às empresas canadianas. Por outro lado, temos um pressão fortíssima das instituições europeias a tentar forçar as ditas reformas estruturais com o desmantelamento das funções sociais do Estado e a introdução de lógicas mercantis a todas as áreas até há pouco tempo abrangidas pelo perímetro do serviço público. Estamos a falar não só da educação e da saúde, como também da energia, dos transportes, dos serviços postais e da habitação. Finalmente, existe a regra do torniquete que impede qualquer retrocesso nesta matéria. O que sai da esfera pública não volta mais. Aí está a famosa «defesa» dos serviços públicos.

 A questão da agricultura e dos bens alimentares tem tido um justo destaque tendo em conta o impacto do CETA na produção, mas igualmente da saúde dos consumidores. Mais do que sublinhar o fosso que nos separa do Canadá em matéria de segurança alimentar (OGM, factores de crescimento, hormonas etc.), importar confrontar os dois modelos produtivos na Europa e no Canadá. Numa realidade que é dinâmica, e apesar das tendências liberalizantes, a agricultura no espaço da União Europeia ainda está razoavelmente assente na pequena propriedade e em normas que obedecem ao princípio de precaução que inibe o uso de um vasto conjunto de substâncias profusamente utilizadas no Canadá, onde prevalece a agricultura intensiva em larga escala. Assim, o acordo prevê contingentes de centenas de milhares de toneladas de carne bovina e suína, que não deixarão de entrar no nosso mercado apesar de a produção na União Europeia ser excedentária nestes domínios. Quem e como vão ser feitos os controlos quando sabemos que a lógica do controlo ao longo de toda a cadeia de produção apenas existe na União Europeia? No Canadá, o controlo é feito apenas no fim da linha, daí a prática usual de desinfectar carcaças com cloro para mascarar deficiências de higiene a montante. Finalmente temos as denominações geográficas que ficam sem protecção uma vez que o acordo apenas reconhece centena e meia das mais de duas mil existentes nos estados membro da UE.

 Curiosamente, ao longo das mais de 1600 páginas do acordo, não existe uma única cláusula sobre direitos humanos. Quanto ao capítulo sobre as leis laborais (capítulo 23) apenas vemos vagos apelos à manutenção dos níveis actuais de protecção das leis laborais em vigor no Canadá e na UE. Não existe um único mecanismo para controlar ou forçar as partes a não baixar os níveis de protecção dos trabalhadores e evitar um mais que previsível dumping legislativo em matéria laboral. É bom referir que o Canadá não representa nenhum exemplo nesta matéria. Grande parte das 190 convenções da Organização Internacional do Trabalho não foram ratificadas pelo Canadá. Citemos a título de exemplo a convenção sobre contratação colectiva (N98) ou sobre higiene e segurança no trabalho (N155) ou ainda sobre a idade mínima para entrar no mercado de trabalho (N38). Quanto à convenção sobre protecção dos trabalhadores migrantes (N97 e 143), nem vê-la.

 Em suma, o CETA, como instrumento ao serviço do grande capital, representa uma muito má notícia para os trabalhadores. Pretende aumentar a concorrência à escala internacional levando os estados e as regiões a fazer baixar os níveis de protecção social e laboral por forma a atrair o investimento estrangeiro predador. E ao contrário dos direitos dos trabalhadores que não dispõem de nenhum instrumento para a sua defesa, as multinacionais não deixarão de usar o mecanismo de resolução de litígios (ISDS) para colocar em causa direitos e eventuais avanços sociais que possam pôr em causa os seus lucros.

A luta necessária

 A entrada em vigor deste Acordo representa um perigo não só pelos termos do acordo em si, mas também pelo precedente que abre a futuros acordos deste tipo. Não é por acaso que o CETA tem sido apelidado de cavalo de Tróia do TTIP. Por um lado, a presença de centenas de filiais norte-americanas em território canadiano irá permitir a estas beneficiar de todas as vantagens do TTIP ainda que o mesmo não venha a ser aprovado. Por outro, a aprovação do CETA visa desmobilizar muitos daqueles que lutam por um outro modelo de relacionamento comercial entre países, tentando-se assim relançar o processo negocial do TTIP que está neste momento em «banho-maria». E desiludam-se aqueles que apostam no alegado proteccionismo da nova administração norte-americana. Tratando-se do interesse das multinacionais todos irão convergir no mesmo, independentemente de diferenças de estilo ou táctica.

 Após um interessante mas curto período de resistência protagonizado pelo governo regional da Valónia (Bélgica), o acordo acabou por ser aprovado pelo Conselho Europeu após algumas concessões cosméticas sem qualquer significado. Infelizmente o Governo português ficará para a memória como um dos entusiastas deste Acordo. Segue-se agora a aprovação pelo Parlamento Europeu e a ratificação por parte dos parlamentos nacionais. Simultaneamente persiste a inaceitável e ilegal pretensão da Comissão de forçar a entrada em vigor do Acordo sem estar concluído o processo de ratificação, mais uma prova do real valor que a Comissão dá às palavras «democracia» e «soberania». Pela parte do PCP, que já se pronunciou de forma inequívoca contra o tratado e contra a sua entrada em vigor parcial até à ratificação nacional, pensamos que a luta pode e deve continuar. Uma batalha pelo esclarecimento, pela mobilização e também pela necessidade de contrapor um outro modelo de cooperação internacional assente no princípio das vantagens mútuas e no respeito pela soberania de cada Estado.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Avante, do 9 de febreiro de 2017]