Coronavírus, um detonador da crise potencializado pelo lucro

Claudio Katz - 18 Mar 2020

É evidente que o coronavírus golpeará os mais pobres e produzirá tragédias inimagináveis, se chegar aos países com sistemas de saúde inexistentes, deteriorados ou demolidos. Pela elevada contagiosidade da pandemia e seu forte impacto sobre as pessoas mais velhas, a estrutura hospitalar já se encontra em crise nas economias avançadas

 A crise econômica mundial se aprofunda a um ritmo tão vertiginoso como a pandemia. Já ficou para trás a redução da taxa de crescimento e a freada brusca do aparato produtivo chinês. Agora se derrubou o preço do petróleo, colapsaram as Bolsas e se instalou o pânico no mundo financeiro.

 Muitos sugerem que o desempenho aceitável da economia foi abruptamente alterado pelo coronavírus. Também estimam que a pandemia pode provocar o reinício de um colapso semelhante ao de 2008. Mas neste caso foi imediatamente visível a culpabilidade dos banqueiros, a ganância dos especuladores e os efeitos da desregulamentação neoliberal. Agora só se discute a origem e as consequências de um vírus, como se a economia fosse outro paciente afetado pelo terremoto sanitário.

 Na realidade, o coronavírus detonou as fortes tensões prévias dos mercados e os enormes desequilíbrios que o capitalismo contemporâneo acumula. Acentuou uma desaceleração da economia que já havia debilitado a Europa e colocado os Estados Unidos em cheque.

 O divórcio entre essa retração e a continuada euforia das Bolsas antecipava o estouro da típica bolha, que periodicamente infla e importuna Wall Street. O coronavírus precipitou esse colapso, que não obedece a nenhuma convalescência imprevista. Só repete a conhecida patologia da financeirização.

 Diferentemente de 2008, a nova bolha não se localiza no endividamento das famílias ou na fragilidade dos bancos. Se concentra nos passivos das grandes empresas (dívida corporativa) e nas obrigações de muitos estados (dívida soberana). Além disso, há sérias suspeitas sobre a saúde dos fundos de investimento, que aumentaram sua preponderância na compra e venda de títulos.

 A economia capitalista gera esses tremores e nenhuma vacina pode controlar as convulsões desatadas pela ambição de lucro. Mas a miséria, o desemprego e os sofrimentos populares que provocam esses terremotos ficaram agora diluídos pelo terror que a pandemia suscita.

 Também a queda do preço do petróleo antecedeu o tsunami sanitário. Dois grandes produtores (Rússia e Arábia Saudita) e um jogador de peso (Estados Unidos), disputam a fixação do preço de referência do combustível. Essa rivalidade quebrou o organismo continha a desvalorização do petróleo bruto (OPEP mais 10).

 A sobreprodução que precipita este barateamento do petróleo é outro desequilíbrio subjacente. O excedente de mercadorias - que se estende aos insumos e às matérias-primas - é a causa da grande batalha que enfrentam Estados Unidos e China.

 Os dois principais determinantes da crise atual - financeirização e sobreprodução - afetam todas as empresas, que empapelaram com títulos os mercados ou se endividaram, para gerir os excedentes invendáveis. O coronavírus é totalmente alheio a esses desequilíbrios, mas sua aparição incendiou o pavio de um arsenal saturado de mercadorias e dinheiro.

 Vários especialistas destacaram também como as transformações capitalistas das últimas quatro décadas incidem sobre a magnitude da pandemia. Observam que as contaminações anteriores - separadas por lapsos prolongados - irrompem agora com maior frequência. Ocorreu com a SARS (2002-03), a gripe suína H1N1 (2009), o MERS (2012), o Ebola (2014-16), o zika (2015) e a dengue (2016).

 É muito visível a conexão destes surtos com a urbanização. A concentração da população e sua forçada proximidade multiplica a disseminação dos germes. Também torna-se evidente o efeito da globalização, que incrementou em forma exponencial o número de viajantes e a consequente expansão dos contágios a todos os cantos do planeta. A forma com que o coronavírus provocou em poucas semanas o colapso da aviação, do turismo e dos cruzeiros é um contundente retrato deste impacto.

 O capitalismo globalizou de forma vertiginosa muitas atividades lucrativas, sem estender essa remodelação das fronteiras ao sistema sanitário. Ao contrário, com as privatizações e os ajustes fiscais se aprofundou a desproteção em todos os países, frente a doenças que se mundializam em velocidade inusitada.

 Alguns estudiosos também recordam que, após a SARS, foram abandonados vários programas de investigação para conhecer e prevenir os novos vírus. Prevaleceram os interesses dos conglomerados farmacêuticos, que priorizam a venda de medicamentos aos doentes solventes. Um exemplo patético desta primazia do lucro se observou nos Estados Unidos no começo da pandemia com a cobrança do teste de detecção do coronavírus. Essa ausência de gratuidade reduziu o conhecimento dos casos, em um momento chave para o diagnóstico.

 Outros especialistas destacam como se destruiu o habitat de muitas espécies silvestres, para forçar a industrialização de atividades agropecuárias. Essa devastação do meio ambiente criou as condições para a mutação acelerada ou a fabricação de novos vírus.

 A China foi um epicentro destas mudanças. Em nenhum outro país convergiu de forma tão vertiginosa a urbanização com a integração às cadeias globais de valor e a adoção de novas normas de alimentação.

 Na nata do establishment, o coronavírus já recriou o mesmo temor que invadiu todos os governos durante o colapso financeiro de 2008. Por isso se repetem as condutas e se prioriza o socorro das grandes empresas. Mas existem muitas dúvidas sobre a eficácia atual destas medidas.

 Com menores taxas de juros se busca compensar o colapso do nível de atividade. Mas o custo do dinheiro já se situa em um patamar que torna incerto o efeito re-ativador do novo barateamento. As mesmas incógnitas geram a injeção massiva de dinheiro e a redução de impostos.

 O dólar e os títulos do tesouro dos Estados Unidos se converteram novamente no principal refúgio dos capitais, que buscam proteção diante da crise. Mas a primeira potência está comandada na atualidade por um mandatário brutal, que utilizará esses recursos para o projeto imperial de restaurar a hegemonia norte-americana.

 Por essa razão, diferentemente de 2008 prevalece uma total ausência de coordenação frente ao colapso que sobrevoa a economia. A sintonia que exibia o G20 foi substituída pelas decisões unilaterais que adotam as potências. Impôs-se um princípio defensivo de salvação às custas do vizinho.

 Não só os Estados Unidos define medidas sem consultar a Europa (suspensão dos vôos), mas os próprios países do velho continente atuam por sua própria conta, esquecendo o pertencimento a uma associação comum. Todas as consequências de uma globalização da economia - no velho marco dos estados nacionais - afloram no tremor atual. Ninguém sabe como o capitalismo lidará com este cenário.

 As terríveis consequências da crise para a economia latino-americana estão à vista. O colapso dos preços das matérias-primas é complementado por massivas saídas de capital e grandes desvalorizações da moeda no Brasil, no Chile e no México. O colapso que sofre a Argentina começa a se transformar em um espelho de sofrimentos para toda a região.

 É evidente que o coronavírus golpeará os mais pobres e produzirá tragédias inimagináveis, se chegar aos países com sistemas de saúde inexistentes, deteriorados ou demolidos. Pela elevada contagiosidade da pandemia e seu forte impacto sobre as pessoas mais velhas, a estrutura hospitalar já se encontra em crise nas economias avançadas.

 Na estréia do coronavírus se multiplicaram os questionamentos ao comportamento dos distintos governos. Houve fortes indícios de irresponsabilidade, ocultamento de dados ou demoras na prevenção, visando não afetar os negócios. Mas a drástica reação posterior começa a aproximar-se de um manejo de economia de guerra. Nesta virada incidiu o contágio sofrido por vários membros da elite de ministros gerentes e figuras do espetáculo.

 Os meios de comunicação também oscilam entre o ocultamento dos problemas e o estímulo do terror coletivo. Alguns extremam esse medo para propagar declarações racistas, hostilizar a China ou difamar os imigrantes. Mas todos atribuem ao coronavírus a responsabilidade pela crise, como se o capitalismo fosse alheio a esta convulsão em curso.

 Os poderosos buscam bodes expiatórios para se eximirem dos dramas que originam, potencializam ou mascaram. O coronavírus é o grande perigo do momento, mas o capitalismo é a doença permanente da sociedade atual.

 

[Artigo tirado do sitio web Comuna Internacional, do 17 de marzo de 2020]