Enfrentar os desafios da esquerda na zona euro

Eric Toussaint - 05 Dec 2018

É impossível romper com as políticas de austeridade sem tomar medidas radicais contra o grande capital. Ao nível europeu, a natureza da arquitectura europeia e a amplidão da crise do capitalismo fazem com que não haja de facto espaço para as políticas produtivistas neokeynesianas

 É terrível verificar que quem está a recusar reduzir o défice orçamental é o governo de direita no poder em Itália desde o Verão de 2018, ao passo que os pretensos governos de esquerda respeitam a imposição da austeridade orçamental. Uma vez que os povos da zona euro estão cada vez mais revoltados contra as políticas impostas pelos dirigentes europeus e pelo grande capital, é urgente a esquerda radical dar início a um sério combate contra as estruturas da União Europeia e da zona euro. Há que aprofundar a sua crise de legitimidade, para tornarmos claros os desafios com que os povos estão confrontados. É preciso adoptar uma estratégia internacionalista e anticapitalista de ruptura e avançar com uma federação ecossocialista dos povos da Europa. Uma grande parte da população aspira a mudanças radicais; se a esquerda mostrar que tem propostas sólidas e se compromete plenamente na sua realização, poderá recuperar o apoio popular. A esquerda tem de reencontrar a coragem de assumir uma orientação profundamente radical, internacionalista, feminista, ecologista, anti-racista, socialista, comunista e libertária.

 Um dos temas centrais e concretos sobre o qual a ruptura tem de ser feita diz respeito à problemática das dívidas públicas, que são utilizadas para justificar a continuação das políticas de austeridade.

 A maneira como os governos geriram a crise económica e bancária iniciada em 2007-2008 gerou um aumento massivo das dívidas públicas. A partir de Maio de 2010, a dívida tornou-se um tema central na Grécia e no resto da zona euro. A maior parte dos países foi afectada. O primeiro programa de 110 mil milhões de euros decidido pela Troika impôs à Grécia uma política de austeridade draconiana e ao mesmo tempo provocou o consequente aumento da dívida pública grega. O mesmo processo foi seguido na Irlanda (2010), Portugal (2011), Chipre (2013) e Espanha sob formas específicas em cada país. No caso da Itália, em 2018, a dívida atingiu 130 % do PIB.

 Os programas aplicados pelos dirigentes europeus tinham cinco objectivos fundamentais:

  1. Permitir aos bancos privados [1] receberem apoio público, a fim de não terem de pagar a factura do rebentamento da bolha do crédito privado que eles próprios criaram e evitar uma nova crise financeira internacional de grandes dimensões [2].
  2. Dar aos novos credores públicos [3] que vieram substituir os credores privados um enorme poder de coerção sobre os governos e as instituições dos países periféricos, a fim de impor uma política de austeridade radical, de desregulamentações (contrárias a uma série de conquistas sociais), de privatizações e de reforço de práticas autoritárias (ver ponto 5).
  3. Preservar o perímetro da zona euro (o que significa manter na zona euro a Grécia e os restantes países periféricos), que constitui um instrumento poderoso nas mãos das grandes empresas privadas europeias e das economias que dominam a zona euro.
  4. Fazer do aprofundamento das políticas neoliberais, na Grécia em particular mas também nos outros países da Periferia, um exemplo e um meio de pressão sobre o conjunto das populações europeias.
  5. Reforçar à escala europeia (tanto no âmbito da UE como em cada Estado-Membro) as formas autoritárias de governação, sem recorrer directamente a novas experiências do tipo fascista ou de governo militar (de que foi exemplo o regime dos coronéis gregos em 1967-1974). Este último aspecto é frequentemente pouco tido em conta, pondo-se a tónica sobre os aspectos económicos e sociais. A tendência autoritária dentro da UE e da zona euro é ao mesmo tempo um factor central e um objectivo proposto de forma deliberada pela Comissão Europeia e pelo grande capital. Isto produz o reforço do poder executivo, o recurso a procedimentos atamancados de voto, a violação ou limitação de uma série de direitos, a falta de respeito pelas escolhas dos eleitores, o aumento da repressão sobre os protestos sociais, etc.

 Para romper com a austeridade, há que extrair lições do fracasso da política adoptada pelo governo de Alexis Tsipras em 2015. É preciso também tomar consciência dos limites da experiência do governo do Partido Socialista minoritário de António Costa em Portugal [4].

 Uma orientação alternativa e favorável aos interesses dos povos tem de atacar a austeridade, a dívida pública, a moeda, os bancos privados, a zona euro, as políticas autoritárias; tem de lançar processos constituintes. O balanço do período 2010-2018 na zona euro é claro: é impossível sair da austeridade sem dar resposta aos referidos problemas. É preciso acrescentar, claro está, que a alternativa também deve abordar outros problemas, entre os quais a crise climática e ecológica, a crise humanitária ligada ao reforço duma fortificação europeia que todos os anos condena à morte, no Mediterrâneo e noutras paragens, milhares de candidatos à imigração e ao exílio, isto sem esquecer a crise do Próximo Oriente. É preciso igualmente lutar contra a extrema direita e a escalada do racismo. A esquerda radical, os movimentos sindicais, sociais, feministas e ecologistas europeus têm de lançar pontes em direcção às forças que resistem nos EUA após a eleição de Donald Trump – nomeadamente com a aparição do movimento radical de esquerda encorajado pela campanha de Bernie Sanders –, chamadas a combater na linha da frente contra Trump e seus projectos. É também vital que os movimentos de esquerda radical do continente desenvolvam uma colaboração estreita com a esquerda britânica e o corbynismo.

 Uma grande parte da esquerda radical com representação parlamentar tinha, e continua a ter, uma percepção errónea da integração europeia no quadro da UE e da zona euro. Em palavras simples: vê na UE e na zona euro mais vantagens que inconvenientes; considera que tanto a UE como a zona euro são compatíveis com o regresso às políticas social-democratas, com um pouco menos de injustiça e um pouco de retoma keynesiana.

 É fundamental, com base na experiência de 2015, reforçar o campo das forças que não alimentam ilusões sobre a UE e a zona euro e que dão prioridade a uma autêntica perspectiva ecossocialista de ruptura com a UE, tal como esta está constituída. É preciso partir da conclusão que a UE e a zona euro não podem ser reformadas.

 Em 2015 tornou-se patente a impossibilidade de, com base na legitimidade do sufrágio universal e na simples discussão, convencer a Comissão Europeia, o FMI, o BCE e os governos neoliberais no poder nos outros países europeus a tomarem medidas que respeitem os direitos dos cidadãos gregos ou dos povos em geral. O referendo de de 5/07/2015 que estas instituições combateram por meio de chantagem e coerção (com o encerramento durante cinco dias dos bancos gregos antes do referendo) não os convenceu da necessidade de fazerem concessões. Pelo contrário, radicalizaram as suas exigências, espezinhando direitos democráticos fundamentais.

 Não restam dúvidas de que podiam e deviam ter sido tomadas uma série de medidas à escala europeia para relançar a economia, reduzir a injustiça social, tornar o reembolso da dívida sustentável e devolver o fôlego à democracia. Yanis Varoufakis, enquanto ministro grego das Finanças, apresentou em Fevereiro de 2015 uma série de propostas que iam nesse sentido. Uma delas consistia em trocar a dívida grega por dois novos tipos de obrigações: 1) obrigações indexadas ao crescimento; 2) obrigações chamadas «perpétuas», no sentido em que a Grécia reembolsaria unicamente os juros, mas perpetuamente [5]. Apesar de moderadas, as propostas de Varoufakis não tinham em boa verdade qualquer hipótese de serem aceites pelas autoridades europeias.

 É o caso de uma série de propostas que visavam aliviar radicalmente o peso da dívida grega, assim como a de vários outros países europeus (por via da mutualização das dívidas, emissão de eurobonds, etc.). Tecnicamente estas propostas podiam ser aplicadas, mas é preciso ter em conta que no contexto político e com as relações de força prevalecentes na UE os países com governos progressistas não podem esperar ser ouvidos, respeitados e menos ainda apoiados pela Comissão Europeia, pelo BCE e pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade. O BCE tem meios para asfixiar o sistema bancário de um Estado-Membro da zona euro, cortando o acesso dos bancos às reservas líquidas. Como já foi referido, o BCE usou esse expediente em 2015 contra a Grécia. A União Bancária e o poder arbitrário do BCE reforçam os meios coercivos das instituições europeias para fazer fracassar uma experiência de esquerda.

 Face às próximas eleições europeias de Maio de 2019, várias forças de esquerda avançaram propostas semelhantes às de Varoukakis, apesar de não terem a mínima chance de as pôr em prática. De facto, basta que alguns governos da zona euro se oponham a elas, para tornar impossível a aplicação de medidas que necessitam do acordo do BCE.

 Os tratados tornaram-se hipercoercivos em matéria de dívida e défice. Em teoria, as autoridades europeias, incluindo o conselho de ministros, poderiam decidir a sua suspensão, tendo em conta a situação de crise (já o fizeram a favor de governos que estavam do seu lado) [6], mas é evidente que não têm a mínima intenção de o fazer. Pelo contrário, tanto essas instituições como o FMI e os governos neoliberais no poder nos outros países combateram activamente o Governo grego, ainda que este tenha dado provas de grande moderação (é o mínimo que se pode dizer). A maior parte dos meios de comunicação e numerosos dirigentes políticos europeus apresentou Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis como rebeldes e até mesmo como radicais antieuropeus. A Troika combateu a experiência em curso na Grécia entre Janeiro e Fevereiro de 2015, a fim de mostrar a todos os povos da Europa que não existem alternativas ao modelo capitalista neoliberal.

 Os dirigentes europeus e o FMI não se deram por satisfeitos com a capitulação do governo de Alexis Tsipras 1; exigiram que o governo Tsipras 2 aprofundasse as políticas neoliberais e conseguiram-no, brutalizando ainda mais o sistema da segurança social, em particular o sistema de reformas, acelerando as privatizações, impondo várias mudanças no plano jurídico e legislativo que constituem recuos estruturais fundamentais a favor do grande capital e contra o bem comum. Eis uma lista incompleta: modificações na legislação para que em caso de falência de uma empresa os credores bancários tenham prioridade sobre os assalariados e reformados da empresa; marginalização total dos poderes públicos nas assembleias de accionistas dos bancos; poder acrescido para os organismos independentes encarregados da colecta de impostos; novos recuos no sistema de reformas; novos recuos no código do trabalho e no exercício do direito à greve; novas privatizações; adaptação da legislação a fim de permitir o despejo das famílias endividadas; leilão compulsivo, via Internet, dos bens das pessoas endividadas; repressão dos cidadãos e das cidadãs que prestam auxílio às pessoas ameaçadas de ser expulsas das suas casas; mecanismo de cortes orçamentais automáticos em caso de desvio da meta de excedente orçamental inscrita no 3º Memorando. Verifica-se também um agravamento do endividamento das famílias. Apesar de a Grécia ter saído oficialmente do 3º Memorando a 20/08/2018, os mesmos constrangimentos sobre o orçamento estatal mantêm-se e continuam a sufocá-la. O governo de Tsipras esforçou-se por garantir um excedente orçamental primário durante os próximos 10 anos. Todas estas novas medidas e contra-reformas reforçam a injustiça e a precariedade. Não foi concedida à Grécia uma redução do stock da dívida e o país continua a reembolsar dedos e anéis ao BCE e ao FMI [7].

 Impõe-se uma primeira conclusão: sem tomar fortes medidas soberanas e unilaterais de autodefesa, as autoridades nacionais e os povos que as mandataram para romper com a austeridade não poderão pôr fim à violação dos direitos humanos, perpetrada a mando dos credores e das grandes empresas privadas.

 Poderá haver quem argumente que se um governo de esquerda chegasse ao poder em Madrid, poderia servir-se do peso da economia espanhola (4ª economia da zona euro em termos de PIB) para negociar com os principais governos da zona euro e obter as concessões que Tsipras não alcançou. Quais concessões? A possibilidade de relançar a economia e o emprego graças a despesas públicas massivas e portanto com um défice considerável? Berlim, o BCE e várias outras capitais da zona euro opor-se-iam! A possibilidade de adoptar medidas vigorosas em relação aos bancos? O BCE, apoiado pela Comissão Europeia, rejeitaria essa opção.

 Não é difícil calcular que se as forças de esquerda radical conseguissem chegar ao governo em países como Portugal, Chipre, Irlanda, Eslovénia ou as três repúblicas bálticas, não teriam meios para convencer a Comissão e a direcção do BCE a deixá-las pôr fim à austeridade, parar com as privatizações e desenvolver os serviços públicos, reduzir radicalmente a dívida, etc. Esses governos terão de resistir e tomar medidas unilaterais para defender as suas populações. E se vários governos de esquerda fossem empossados ao mesmo tempo em vários países da zona euro e se juntassem para exigir uma renegociação? Isso seria óptimo, mas trata-se de uma hipótese pouco provável nos tempos mais próximos, quanto mais não seja devido aos calendários eleitorais.

 Será que um governo da França Insubmissa, em caso de vitória nas eleições presidenciais de Maio de 2022 e das forças radicais de esquerda nas eleições legislativas que se lhe seguirão, poderia forçar a reforma do euro? É esta a hipótese avançada por Jean-Luc Mélenchon. Temos boas razões para duvidar dela. Admitamos que Jean-Luc Mélenchon chega à presidência e constitui governo. Nesse caso quererá aplicar uma série de medidas de justiça social e tentar obter uma reforma do euro. Que poderia acontecer? Seria perfeitamente possível um governo de esquerda em França desobedecer aos tratados e fazer valer a suas escolhas, mas não conseguiria obter uma reforma profunda da zona euro. Para isso, seriam necessárias várias vitórias eleitorais simultâneas, tanto nos países do centro como em vários países da periferia da zona euro. Dito isto, é claro que um governo da França Insubmissa e dos seus aliados que aplicasse medidas unilaterais a favor da população francesa e dos povos de todo o mundo (por exemplo anulando unilateralmente as dívidas da Grécia e dos países ditos em desenvolvimento em relação à França) poderia desempenhar um papel muito positivo e mobilizador na Europa.

 Reconhecer estes factores não significa procurar uma saída nacionalista para a crise nem baixar os braços. O passado comprova que é necessário adoptar uma estratégia internacionalista e propor uma federação europeia dos povos, oposta à continuação da forma actual de integração, que é totalmente dominada pelos interesses do grande capital. Há que procurar continuamente desenvolver campanhas e acções coordenadas ao nível do continente e além-continente nos domínios da dívida, do direito à habitação, do acolhimento de imigrantes e refugiados, da saúde pública, da educação pública, do direito do trabalho, da luta pelo encerramento das centrais nucleares, da redução radical do recurso às energias fósseis, da luta contra o dumping fiscal e os paraísos fiscais, do combate pela socialização dos bancos e seguradoras, da acção contra a evolução cada vez mais autoritária dos modos de governação, da luta pelo alargamento dos direitos das mulheres e LGBTI, da defesa dos bens públicos, do lançamento de processos constituintes.

 Os elos fracos da cadeia de dominação intra-europeia encontram-se nos países periféricos e em França e no Reino Unido. Se o Syriza tivesse posto em prática uma estratégia correcta, ter-se-ia dado uma reviravolta positiva em 2015. Não foi isso que aconteceu. Os outros elos fracos da cadeia onde a esquerda radical pode chegar ao governo nos próximos anos são nomeadamente a Espanha e Portugal. Talvez o mesmo venha a ser possível em anos vindouros na Irlanda, Eslovénia, Chipre, etc. Tudo depende de vários factores: nomeadamente da capacidade da esquerda radical para extrair as lições de 2015 e apresentar propostas anticapitalistas e democráticas que suscitem adesão, assim como do grau de mobilização popular. Se não houver pressão nas ruas, nos bairros, nos locais de trabalho, para a realização de mudanças reais e para a recusa de compromissos coxos, o futuro será sombrio.

Dez propostas para que não se repita a capitulação a que assistimos na Grécia

 Para evitar que se repita a capitulação a que assistimos na Grécia em 2015, eis 10 propostas para a mobilização social e para uma acção governativa realmente ao serviço do povo. São propostas para pôr em prática de forma imediata e simultânea.

 A primeira proposta consiste na necessidade de um governo de esquerda desobedecer, de forma muito clara e com aviso prévio, à Comissão Europeia. Um partido, ou uma coligação de partidos, que pretenda governar deve desobedecer desde o início às exigências de austeridade. Deve também recusar as limitações orçamentais. Tem de dizer: «Nós não respeitamos a obrigação decretada pelos tratados europeus de ter como meta um equilíbrio orçamental, porque queremos aumentar a despesa pública, de modo a lutar contra as medidas anti-sociais e de austeridade e para encetar a transição ecológica. Isto implica aumentar o défice orçamental durante vários anos». Por consequência, o primeiro ponto consiste no empenho claro e determinado em desobedecer. Após a capitulação grega, é indispensável abandonar as ilusões quanto à hipótese de a Comissão Europeia e outros governos europeus respeitarem a vontade popular. Manter esta ilusão só pode conduzir ao desastre. Temos de desobedecer.

 Segundo ponto: Empenhar-se em apelar à mobilização popular, tanto ao nível de cada país, como ao nível europeu. Também este aspecto falhou em 2015 na Grécia e em França. É evidente que os movimentos sociais europeus não estiveram à altura em termos de manifestações; elas existiram, sem dúvida, mas não demonstraram um nível suficiente de solidariedade com o povo grego. Mas também é verdade que a orientação estratégica do Syriza não previa o apelo à mobilização popular ao nível europeu, nem sequer o apelo à mobilização popular na Grécia. E quando o governo de Tsipras apelou à mobilização para o referendo de 5 de Julho de 2015, foi para desrespeitar logo de seguida a vontade popular de 61,5 % dos Gregos, que recusaram obedecer às exigências dos credores e suas propostas. Recordemos que a partir de finais de Fevereiro de 2015 e até finais de Junho de 2015, Yanis Varoufakis e Alexis Tsipras fizeram declarações que visavam convencer a opinião pública de que estava na calha um acordo e que tudo se resolveria. Imaginemos, inversamente, que após cada negociação importante eles tivessem explicado o que estava em jogo, através de comunicados, declarações orais nos meios de comunicação, tomando a palavra nas praças públicas, nas bancadas das instituições europeias em Bruxelas e noutros lugares. Imaginemos que eles tinham posto a nu o que estava a ser tramado e que apelavam à mobilização dos povos – ter-se-ia assistido a concentrações de milhares ou dezenas de milhar de pessoas; as redes sociais teriam transmitido esse discurso alternativo a centenas de milhar ou milhões de destinatários.

 Terceiro ponto: Comprometer-se a organizar uma auditoria da dívida com participação dos cidadãos e comprometer-se a recusar o reembolso das dívidas ilegítimas. As situações nos países da União Europeia são diferentes, assim como no interior da zona euro. Há países europeus onde a suspensão dos reembolsos é uma medida de necessidade absoluta e prioritária, como no caso da Grécia, a fim de responder antes de tudo às necessidades sociais e garantir os direitos humanos fundamentais. É também o elemento chave de uma estratégia de autodefesa. Em Espanha, em Portugal, no Chipre, na Irlanda, tudo depende das relações de forças e da conjuntura. Noutros países é possível realizar primeiro a auditoria e só depois tomar a decisão de suspender os reembolsos. Estas medidas deveriam ser postas em prática tendo em conta a situação específica de cada país.

 Face às ameaças de represálias por parte do BCE, os povos dos Estados-Membros da zona euro dispõem de uma poderosa arma de autodefesa. De facto, o BCE detém grandes quantidades de títulos soberanos dos países da zona euro, que comprou aos bancos privados no quadro do Quantitative Easing. À data de 30/09/2018, o BCE detinha um total de títulos soberanos espanhóis no valor de 256 mil milhões €, 360 mil milhões € de títulos italianos, 414 mil milhões € de títulos franceses, 36 mil milhões € de títulos portugueses [8]. Ao todo, detinha em Setembro de 2018 à volta de 2150 mil milhões € de títulos soberanos de países da área do euro (se incluirmos o que ainda lhe resta dos títulos gregos comprados em 2010-2012). Imaginem que um governo de esquerda em Espanha ou em França diz ao BCE: «se procurarem impedir-nos de levar a cabo a política que nos comprometemos a realizar perante o povo do nosso país, suspenderemos imediatamente o reembolso dos títulos que detêm». Esta suspensão incidiria quer sobre os juros quer sobre as prestações a vencer. O governo teria assim nas suas mãos uma poderosa arma de autodefesa e de pressão que não devia hesitar em usar. Se ainda por cima essa dívida for considerada odiosa pelo governo e pelo povo, por ter servido fins contrários ao interesse da maioria, o repúdio com base numa auditoria cidadã constitui um acto legítimo.

 Quarta medida: Introduzir um controlo dos movimentos de capitais. E ter em conta o que isso significa. Ou seja, abraçar a ideia de que não seria permitido aos cidadãos transferir centenas ou milhares de euros para o estrangeiro. É evidente que as transacções financeiras internacionais serão autorizadas até um certo montante. Em contrapartida, é preciso montar um controlo estrito dos movimentos de capitais acima de um montante predeterminado.

 Quinta medida: Socializar o sector financeiro e o sector da energia. Socializar o sector financeiro não consiste unicamente em desenvolver um pólo bancário público. Trata-se de decretar um monopólio público sobre o sector financeiro, ou seja sobre os bancos e as companhias de seguros. A socialização consiste em colocar o sector financeiro sob controlo cidadão e criar um serviço público bancário. Socializar o sector bancário significa:

- expropriar sem indemnização (ou por uma quantia simbólica) os grandes accionistas (os pequenos devem ser indemnizados);

- conceder ao sector público o monopólio da actividade bancária, com uma única excepção: a existência de um sector bancário cooperativo de pequena dimensão (mas submetido às mesmas regras fundamentais do sector público);

- definir – com participação cidadã – uma carta de princípios para os objectivos a atingir e as missões a alcançar, de forma a colocar o serviço público de poupanças, de crédito e de investimento ao serviço das prioridades definidas segundo um processo de planificação democrática;

- apresentar ao público as contas de forma compreensível e transparente;

- criar um serviço público de poupança, de crédito e de investimento, duplamente estruturado, implantando por um lado uma rede de pequenos balcões próximos dos cidadãos, e por outro lado organismos especializados encarregados das actividades da gestão de fundos e do financiamento de investimentos não assegurados pelos ministérios titulares da saúde pública, da educação pública, da energia, dos transportes públicos, das reformas, da transição ecológica, etc. Os ministérios terão de ser dotados do orçamento necessário para financiar os investimentos relevantes às suas atribuições. Quanto aos organismos especializados, intervirão nos domínios e nas actividades que excedam as competências e as esferas de acção dos ministérios, a fim de assegurar a coesão do conjunto [9].

 No quadro da transição ecológica a socialização do sector da energia é também uma medida prioritária. Não haverá transição ecológica sem monopólio público no sector da energia, tanto ao nível da produção como da distribuição.

 Sexta medida: Criar uma moeda complementar, não conversível, e se necessário sair do euro. Quer haja uma saída do euro quer se permaneça na eurozona, é necessário criar uma moeda complementar não cambiável. Dito de outra forma: uma moeda que sirva, em circuito fechado, para as trocas no interior do país. Por exemplo, para pagamento dos aumentos de pensões de reforma e dos salários dos funcionários públicos, liquidação de impostos e pagamento de serviços públicos. A utilização de uma moeda complementar permite sacudir e sair parcialmente da ditadura do euro e do Banco Central Europeu. É claro que não se deve evitar o debate sobre a eurozona. Em vários países a saída da zona euro é uma das opções possíveis e deve ser defendida pelos partidos, sindicatos e outros movimentos sociais. Vários países da zona euro não poderão realmente romper com a austeridade e lançar uma transição ecossocialista se não abandonarem a eurozona. Em caso de saída da área do euro será necessário ou aplicar uma reforma monetária redistributiva[10], ou aplicar um imposto excepcional progressivo acima dos 200 000 €. Esta proporção não diz respeito ao património líquido e por conseguinte não afecta o património imobiliário (casas, terrenos, etc.) evocado na sétima medida.

 Sétima medida: Reforma fiscal radical. Suprimir o IVA sobre os bens e serviços de base – alimentos, electricidade, gás e água (no caso dos últimos três, até um certo nível de consumo per capita) [11] e outros bens de primeira necessidade. Em contrapartida, aumentar o IVA sobre os bens e produtos de luxo, etc. É necessário também aumentar os impostos sobre os lucros das empresas privadas e sobre os rendimentos superiores a um certo escalão. Por outras palavras, um imposto progressivo sobre os rendimentos e o património. A habitação principal deveria ser isenta de imposto quando o seu valor estiver abaixo de um montante que deve variar em função da composição do agregado familiar. A reforma fiscal tem de produzir efeitos imediatos: redução considerável dos impostos directos e indirectos para a maioria da população e subida considerável para os 10 % mais ricos e para as grandes empresas. Por fim, tem de ser intensificada a luta contra a fraude e a evasão fiscal.

 Oitava medida: Desprivatizar. «Recomprar» por quantias simbólicas as empresas privatizadas. Deste ponto de vista, a utilização do euro podia ter uma faceta muito simpática, ao ser pago um euro simbólico a quem tirou partido das privatizações. E reforçar e alargar os serviços públicos sob controlo cidadão.

 Nona medida: Montar um vasto plano de urgência para criar empregos socialmente úteis e para a justiça social. Reduzir o tempo de trabalho, mantendo os salários. Revogar as leis anti-sociais e aprovar leis para resolver a situação das dívidas hipotecárias abusivas, questão com especial relevo e urgência em países como a Espanha, Irlanda, Grécia, etc. Este problema bem poderia ser resolvido por lei, evitando-se a acumulação de processos em tribunal (com numerosos conflitos hipotecários entre as famílias e a banca). O parlamento pode decretar a anulação das dívidas hipotecárias inferiores a 150 000 euros, por exemplo, e assim pôr termo aos processos judiciais. Trata-se também de introduzir um vasto programa de despesas públicas, a fim de relançar o emprego e as actividades socialmente úteis, sobretudo em circuitos de proximidade.

 Décima medida: Encetar um verdadeiro processo constituinte. Não se trata de mudanças constitucionais no quadro das instituições parlamentares actuais. Trata-se de dissolver o parlamento e convocar eleições por sufrágio directo para uma assembleia constituinte, articulando esse processo com as lutas existentes em diversos níveis locais capazes de lançarem as bases de uma sociedade ecossocialista. Para citar apenas algumas dessas lutas: as greves que visam a melhoria das condições de trabalho e desafiam de facto o poder dos patrões; as ocupações e recuperações de fábricas com introdução de modelos autogestionários; a nova vaga de lutas feministas que combate o patriarcado e promove a igualdade de direitos; os movimentos de acolhimento e ajuda aos migrantes; os movimentos ecologistas baseados na ocupação de territórios e na acção directa (ZAD, Ende Gelände, etc.), ao mesmo tempo que inventam novas formas de gestão colectiva; os «municípios rebeldes» que desobedecem às directivas austeritárias e antimigratórias e se ligam em rede; as iniciativas de base para auditar as dívidas públicas e contestar as dívidas ilegítimas. Estas lutas constituem esteios para lançar um processo constituinte de orientação anticapitalista. É necessário integrar este processo noutros processos constituintes semelhantes a nível europeu.

 Estas 10 propostas são sujeitas a debate. Mas uma coisa é certa: as medidas a tomar têm de ir à raiz dos problemas e ser aplicadas simultaneamente, de forma a constituírem um programa coerente. Na ausência da aplicação de medidas radicais desde o início, não poderá haver ruptura com as políticas de austeridade. É impossível romper com as políticas de austeridade sem tomar medidas radicais contra o grande capital. Quem pensa que este caminho pode ser evitado são os «troca-tintas» que jamais conseguirão obter reais progressos concretos. Ao nível europeu, a natureza da arquitectura europeia e a amplidão da crise do capitalismo fazem com que não haja de facto espaço para as políticas produtivistas neokeynesianas. O ecossocialismo não pode ser um tema marginal, tem de estar no âmago do debate; deve gerar propostas imediatas e concretas. Há que levar a bom termo a luta contra a austeridade e tomar uma rota anticapitalista. A transição ecossocialista é uma necessidade absoluta e imediata.

 É fundamental construir e popularizar uma explicação sobre o que é necessário e possível para realizar uma mudança real, pois nas discussões públicas surgem constantemente questões sobre a viabilidade da ruptura com o modelo neoliberal, após o fiasco da experiência grega de 2015.

 As propostas têm de constituir um programa coerente. O programa deveria ser acompanhado de uma espécie de manual do utilizador. Evidentemente é difícil, mas como convencer as pessoas da viabilidade de um programa, se não forem previstos diversos cenários baseados nas lições dos últimos 8 anos na UE em geral e da zona euro em particular?

 É importante ter presente uma análise rigorosa dos acontecimentos do primeiro semestre de 2015. A conclusão é clara: face a um governo popular, a reacção dos órgãos dirigentes da UE e da eurozona será rápida. A Comissão Europeia, o Eurogrupo, a direcção do BCE não ficarão de braços cruzados perante a decisão de um governo popular se embrenhar na via da mudança. Não haverá um período de espera durante meses. O governo popular terá de agir com rapidez.

 No caso da Grécia, desde os primeiros dias a seguir à tomada de posse do governo que o BCE submeteu a Grécia a um processo de asfixia financeira. A recusa do governo de Tsipras de tomar medidas vigorosas de autodefesa levou-o a uma primeira capitulação a 20 de Fevereiro de 2015 [12]. A seguir ainda teria sido possível uma viragem radical, mas o núcleo dirigente que rodeava Tsipras manteve a orientação capitulacionista e isso levou à consequência dramática de Julho de 2015.

 De facto, após a experiência grega, a menos que nos contentemos com o tipo de medidas adoptadas por um governo do tipo António Costa em Portugal, a esquerda tem de integrar na sua estratégia o facto de as medidas de sabotagem que serão tomadas pelas autoridades europeias serem rápidas e duras. Os mercados irão reagir de forma negativa semelhante e os grandes meios de comunicação mostrar-se-ão hostis a um governo popular.

 A esquerda vai por mau caminho se pensar que o Eurogrupo, o BCE, o Governo alemão empossado em 2018 e os seus aliados da zona euro permitiriam a um governo popular em Espanha ou em França ou noutros países da zona euro dar início a mudanças profundas. Para essas instituições é vital impedir o possível alargamento de uma autêntica experiência de esquerda.

 Por conseguinte é preciso mostrar capacidade de elaborar propostas radicais nos domínios da política monetária, da dívida, dos bancos, dos impostos, do orçamento (recusando trabalhar para um excedente primário antes do pagamento da dívida), das relações Capital/Trabalho, do sistema de segurança social, da política internacional e, não menos indispensável, no domínio da democracia política, que implica a convocação de um autêntico processo constituinte.

 Sabemos que para mudar a relação de forças não basta elaborar um programa coerente e juntar-lhe um manual convincente. A mobilização do campo popular será o elemento decisivo. Mas sem programa coerente e sem vontade real de o aplicar, as mobilizações populares correm o risco de não chegar a bom porto, de permanecer fragmentárias. A existência de um programa e a determinação de o propagar talvez permita começar a agitar as fileiras e voltar a partir para a ofensiva.

 Esperemos ser capazes de pôr em confronto as nossas ideias e propostas, a fim de realizar uma elaboração colectiva que ultrapasse o nível actual de fragmentação e de abstracção das propostas do campo popular. Façamos o que é preciso em termos de acção e mobilização para que esse programa seja posto em prática.

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Notas

[1] No caso da Grécia, tratava-se de bancos gregos, franceses, alemães, belgas e holandeses principalmente (cerca de quinze bancos privados). Para uma análise em pormenor, ver Preliminary Report of the Truth Committee on Public Debt, Junho/2015, caps. 1 e 2; intervenção de Éric Toussaint na apresentação do relatório preliminar da Comissão para a Verdade, 17/Junho/2015; ver também «Banks are responsible for the crisis in Greece», publicado em 23/12/2016; ver ainda «Secret IMF Documents on Greece commented by Eric Toussaint (CADTM)».

 [2] Nessa época, as actividades de vários grandes bancos franceses, alemães, holandeses, belgas, etc., envolvidos estavam fortemente imbricadas com os mercados financeiros dos EUA e com os maiores bancos norte-americanos e britânicos. Além disso, e isto tem tudo haver, tinham acesso a uma avultada linha de crédito oferecida pela Reserva Federal norte-americana; daí o interesse demonstrado pela administração de Barack Obama pela crise grega e irlandesa e de forma geral pela crise bancária europeia.

 [3] No caso da Grécia tratava-se de 14 Estados da zona euro «representados» pela Comissão Europeia, pelo FEEF (Fundo Europeu de Estabilidade Financeira) – ao qual sucedeu o MES (Mecanismo Europeu de Estabilidade) –, pelo BCE e pelo FMI.

 [4] Nas eleições legislativas de 4/10/2015 as forças de esquerda obtiveram a maioria absoluta na Assembleia da República: PS ficou em segundo lugar, com 32,4 %; o Bloco de Esquerda em terceiro lugar, com 10,3 % e 19 deputados (tinha 8 em 2011); o PCP ganhou mais um lugar, ficando com 15 deputados; o PEV, partido dos verdes, manteve os seus anteriores 2 lugares. Foi estabelecido um acordo em Novembro de 2015: o PS governa sozinho e os outros dois partidos mais radicais (BE e PCP), apesar de recusarem entrar para o Governo, apoiam no parlamento as decisões do Governo quando lhes convém.

 [5] Cf.: http://www.latribune.fr/actualites/economie/union-europeenne/20150203trib85abe7370/les-propositions-grecques-pour-restructurer-la-dette.html

 [6] Para citar apenas alguns exemplos: a França de Nicolas Sarkozy e a Alemanha de Angela Merkel não foram castigadas, apesar de desrespeitarem as suas obrigações em matéria de défice; mais recentemente, a Comissão Europeia foi igualmente clemente em relação ao governo de Mariano Rajoy em 2015 e em 2016.

 [7] Eric Toussaint, «The Troika’s Policy in Greece: Rob the Greek people and give the money to private banks, the ECB, the IMF and the dominant States of the Eurozone», 20/08/2018.

 [8] Página oficial do BCE, «Breakdown of debt securities under the PSPP», consultado em 3/11/2018.

 [9] Patrick Saurin e Eric Toussaint, «Como socializar o sector bancário», 18/06/2018.

 [10] Ao aplicar uma taxa de câmbio progressiva na passagem do euro para a nova moeda, é possível diminuir o património líquido na posse dos 10 % mais ricos, reduzindo assim as desigualdades.

 [11] Isto pode ser combinado com medidas de gratuitidade do consumo de água, electricidade, gás, transportes públicos, etc., a nível individual e até um certo nível de consumo.

 [12] Eric Toussaint, «Varoufakis-Tsipras rumo ao acordo funesto com o Eurogrupo de 20 fevereiro 2015», 11/02/2018; Eric Toussaint, «A primeira capitulação de Varoufakis-Tsipras, em finais de fevereiro 2015», 14/03/2018.

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[Artigo tirado do sitio web CADTM, do 26 de novembro de 2018]