Entrevista Costas Lapavitsas: “A esquerda precisa falar a língua das classes trabalhadoras”

Ana Luíza Matos de Oliveira e Paula Quental - 23 Xun 2017

No largo senso, o capitalismo, mais uma vez, não está funcionando. Temos que pensar que não se trata apenas do pensamento anticapitalista. De não apenas se opor ao capitalismo. Precisamos buscar alternativas positivas ao capitalismo. Não basta ser anticapitalista. Temos que propor alternativas socialistas

– Existem alternativas para países emergentes, como o Brasil, que sejam respostas à retomada agressiva do neoliberalismo pós-crise de 2008? No caso do Brasil, a esquerda assiste, quase perplexa, a uma ofensiva das classes dominantes para impor reformas ultraliberais. Que opções ela tem diante desta ofensiva?

 A crise dos anos 2008-2009 atingiu vários países desenvolvidos, além dos Estados Unidos, que foi onde ela se iniciou. Atingiu vários países, desenvolvidos e em desenvolvimento, de forma sincronizada, e rapidamente. Isso porque atingiu o comércio de commodities, o fluxo de capitais, os investimentos estrangeiros. Houve impressão por parte de algumas pessoas, em vários países desenvolvidos, de que se poderia continuar no mesmo caminho e a crise terminaria, tudo ficaria OK. Que seria uma situação de crise temporária. Elas estavam dormindo. Agora nós sabemos a realidade. A situação atinge o mercado global e países como o Brasil. Não se imaginava a duração dessa crise e antes dela países da América latina com governos comandados pela esquerda falharam em suas economias com foco no extrativismo e em commodities. Falharam em perceber o que estava acontecendo na economia mundial nas últimas duas décadas. Deveriam ter desenvolvido outros setores da economia, de maneira mais equilibrada. Mas nós sabemos que a mudança é uma coisa difícil.

– Você acredita que o capitalismo está em crise agora?

 O termo crise tem que ser usado cuidadosamente. A esquerda fala em crise o tempo inteiro. E às vezes não significa muita coisa. Óbvio que não estamos em crise como estávamos em 2008-2009. Aquela realmente foi uma crise. Mas nós estamos em um período histórico de transformação nas últimas três décadas, com a globalização, a financeirização e o liberalismo. Não está claro. No largo senso, o capitalismo, mais uma vez, não está funcionando. Temos que pensar que não se trata apenas do pensamento anticapitalista. De não apenas se opor ao capitalismo. Precisamos buscar alternativas positivas ao capitalismo.

– O que você quer dizer com alternativas positivas ao capitalismo?

 Temos que propor coisas positivas, alternativas que unam as pessoas em um mesmo propósito, não somente criticar o capitalismo. Não basta ser anticapitalista. Temos que propor alternativas socialistas, associativismo. Basicamente alternativas socialistas. O capitalismo iniciou uma nova etapa, mas não terminou. Não é o fim.

– O que a crise da Grécia, Portugal, Espanha e outros países da União Europeia submetidos aos rigores da Troika tem a ensinar ao Brasil? E, ao contrário, o que os últimos governos populares do Brasil (com Lula e Dilma), seguidos de um golpe dado pela direita, têm a ensinar à Grécia?

 Isto é muito interessante. Na Europa há claramente uma periferia. Uma nova periferia, conformada pelos países que vocês mencionam. Assim, a Europa tem a ensinar à esquerda sul-americana que as políticas de austeridade que nós fizemos nos últimos sete anos produzem resultados, que promovem a estabilização, mas destroem o emprego, destroem a produção e, na verdade, enfraquecem a economia. É um ponto muito importante para considerar. A perspectiva de crescimento com a estabilização, que na verdade não existe, é a mais importante lição que poderá ser aproveitada pelo Brasil. O resultado das políticas de austeridade na Europa são um equilíbrio da economia muito problemático e uma economia muito fraca. Não se podem cometer os mesmos erros no Brasil. Apenas porque eles querem estabilizar. Austeridade não é o caminho.

– Diante de uma crise do capitalismo de grandes proporções, como a que estamos vivendo, por que a esquerda – em nível mundial – está com dificuldades de propor saídas e ganhar corações e mentes? E, ao mesmo tempo, assistimos ao fortalecimento da direita?

 Eu não sei muito sobre o Brasil, mas eu posso dizer sobre a Europa. Na Europa há duas razões. A primeira é que por muito tempo a esquerda foi apenas anticapitalista. Quando a esquerda propõe na Europa qualquer coisa concretamente é uma proposta para consertar instituições que já existem. E isso vem falhando, sistematicamente. A esquerda perdeu confiança nas ideias mais radicais, de socialismo. Ela parou de ser mais radical porque não confia mais nessas ideias.

 A segunda razão, ligada à primeira, é que a esquerda deixou de ser conectada aos trabalhadores, como era antes. Da forma orgânica anterior. Parou de falar dos interesses dos mais pobres, de suas ideias, aspirações. Deixou de falar a mesma língua dessas pessoas. As políticas de raça e de gênero se tornaram mais evidentes. A partir do momento em que a esquerda abandona a política clássica de classes sociais e a substitui pelas políticas sexuais, de gênero, ela para de falar a língua das classes sociais, dos pobres, das classes trabalhadoras. Fala com pessoas com certo nível de educação, basicamente da classe média. Esquece sua origem plebeia. A esquerda precisa falar a língua das classes trabalhadoras e isso é muito importante para a esquerda na Europa.

– Você acha que essas questões de gênero e raça não deveriam estar interligadas com as de classes?

 Completamente. Deveriam estar conectadas sim. Estamos falando de identidade política. A gente deveria perceber que classe e nação são um tipo de identidade. A questão da classe, da nação, é tudo meio unificado. Ao esquecer a questão de classe, a esquerda se torna supérflua.

– Nós ouvimos falar sobre movimentos e partidos da esquerda dos países da zona do euro de se unirem para propor algumas medidas de enfrentamento da Troika, como a de criar uma moeda complementar ao euro e estatizar o setor financeiro e energético. Isso é verdade? Como está o andamento dessas conversas e propostas?

 Sim, isso está ocorrendo e por duas razões… A primeira é o nível geral da política. Uma grande parte da população grega se sente cansada, exausta, desiludida, zangada por tanta exclusão. Ela sente que foram tentadas muitas opções diferentes nos últimos anos, também por parte da esquerda, e todas falharam, causando desapontamento. A desilusão é em relação à política de uma forma geral. É muito importante que isso seja levado em conta. A segunda razão é que os cidadãos se sentiram traídos em vários pontos pela esquerda. Esse é o estrago feito pela esquerda, e suspeito que esse é o estrago feito pela esquerda através do mundo. O prejuízo na Grécia é enorme. A esquerda perdeu confiança em si mesma e perdemos a aproximação da classe trabalhadora, porque perdemos credibilidade. Então para a gente é um tempo muito difícil. O momento é de um processo de cura. De recriação da esquerda. De levantar, se reerguer. A Grécia tem a necessidade de dar um tempo das instituições capitalistas. A esquerda precisa reinventar a ideia de soberania, o que isso significa, de soberania da população, como nós definimos o conceito do cidadão na Grécia, e como isto está conectado à classe trabalhadora. Como nós podemos nos unir de novo, porque a economia está indo muito mal, há ainda a questão da imigração, o movimento dos refugiados em direção à Europa. A Europa está sendo desafiada a redefinir a sua população nacional, a soberania popular. Nós estamos vivendo um processo de reunificação das esquerdas, pois observamos que o que acontece na esquerda na Espanha é semelhante ao que acontece com a esquerda na França e nos outros países. O movimento é de reunificação, mas não espere um processo rápido.

– É verdade que a Grécia vive hoje o florescimento de iniciativas anarquistas, de organizações autogestionárias, como resultado da crise e no vácuo do desmonte do próprio Estado?

 Eu tenho razão para acreditar que isso está acontecendo. Sempre houve várias formas de anarquismo na Grécia, mas o que há de novo agora? De fato nesse momento na Grécia há uma influência forte do fascismo, e assim também é com o anarquismo. Você pode entender o porquê de isto estar acontecendo de muitas diferentes maneiras, claro. No caso do anarquismo, eles se unem de forma descompromissada, cada um faz seu trabalho, mas há um movimento forte de querer mudar as coisas. O sentimento de traição dos cidadãos dá um impulso extra a esse movimento. Então definitivamente algo está acontecendo. É difícil de dizer o que é. E há tempos que nós não tínhamos tanta violência, a violência terrorista. O anarquismo cresce nesses tempos. Em época de crise, em momentos de fraqueza (do capitalismo), o anarquismo cresce. Eu acho que eles estão se expandindo e seduzem principalmente os mais jovens. Potencialmente, pode ser uma forma de evolução da esquerda, por meio do que chamamos de esquerda radical. Um tipo de esquerda incorruptível na sua proposta de mudar a sociedade. Estamos diante de um desafio e de uma oportunidade para a esquerda.

– Gostaria de fazer algum comentário?

 Sim, eu penso que a esquerda latino-americana especialmente a esquerda que eu vejo no Brasil, na Argentina, tem muitas coisas a ensinar à esquerda europeia. Eles deviam perceber isso. A esquerda europeia está num momento fraco e a esquerda latino-americana tem coisas as mostrar sobre formas de lidar com o capitalismo financeiro, o capitalismo global. Me refiro ao jeito com que vocês lutam contra isso. Até porque existe a histórica exploração da América Latina pela Europa, experiência que a Europa desconhece. O intercâmbio, o fluxo de informação, ainda está muito no começo, é muito embrionário. Temos muito que aprender uns com os outros.

 

[Entrevista tirada do sitio web brasileiro Brasil Debate, do 22 de xuño de 2017]