França: «No caminho» de um novo Maio de 68?

Rémy Herrera - 19 Abr 2018

O pano de fundo dos conflitos que se agudizam é também o de numerosas derrotas sofridas pelo mundo do trabalho no decurso dos últimos anos

 Existe em França um mal-estar profundo que começa a manifestar-se na intensificação das lutas e acções de massas. A sua origem não está apenas nas políticas que o grande patronato dita a Macron, como antes ditava aos seus antecessores. Vem de mais longe e vem de muitos lugares da sociedade. Trabalhadores e desempregados, ferroviários e sem-abrigo, reformados, pacifistas, ecologistas, antifascistas, estudantes. Um fundo rumor de cólera que recorda 1968.

 O Presidente Macron tem razão: «France is back»! Mas não a dos postais ilustrados. A da cólera. Uma cólera que germina no fundo da sociedade francesa, e que tem as suas razões, múltiplas. Não é necessário inventariá-las, estas linhas seriam insuficientes para isso. Uma predomina sobre as outras: desde há décadas, o prosseguimento continuado, obstinado, de políticas neoliberais dilacerou o tecido social, empobreceu as classes trabalhadoras, precarizou os empregos, comprimiu os salários, lançou massas de gente para o desemprego, maltratou as solidariedades. Agudizou os egoísmos, glorificou abjectos valores capitalistas, promoveu os grosseiros reflexos do consumismo, adestrou todas as inteligências à submissão.

 E queriam que o povo não reagisse ?

 Nomeado por Macron, o governo actual dirigido por Édouard Philippe, alegadamente «nem de direita nem de esquerda» (mas então de quê? De «extremo-centro» ?) suprimiu o imposto sobre as grandes fortunas e sobrecarregou os escargos suportados pelos assalariados e os reformados. Ofereceu subvenções astronómicas a transnacionais que levam a cabo despedimentos, mas pressionou os orçamentos dos serviços públicos. Cada dia dilui mais o país numa Europa anti-social, autoritária e submetida ao hegemonismo dos EUA. Aplicando – à sua maneira: por meio de diplomas governamentais que curto-circuitam os deputados dos seu novo partido, En Marche!, embora estes sejam maioritários e inteiramente alinhados – um programa ditado pelo patronato, Macron faz o anúncio de novas privatizações. Como se o neoliberalismo não tivesse, desde há muito e em todo o lado, feito prova do seu fracasso.

 Eis porque se ouve em França o rumor da revolta.

 O pano de fundo dos conflitos que se agudizam é também o de numerosas derrotas sofridas pelo mundo do trabalho no decurso dos últimos anos. Houve, em primeiro lugar, a luta contra a «reforma» das pensões que os sindicatos, divididos, têm perdida desde 2010. Depois, a luta contra a «reforma» do mercado do trabalho («lei Macron», rebaptisada «lei El Khomeri », noma da ministra do Trabalho do último governo Hollande), igualmente perdida no ano passado. A CGT (Confederação Geral do Trabalho) conduziu esta batalha em defesa dos direitos e os interesses dos trabalhadores até 2017 estar bastante adiantado. Isolada, ou quase, não poderia tê-la vencido; tanto mais que nem todos os seus dirigentes são combativos. E houve ainda que resistir à repressão das lutas, à «criminalização» das acções sindicais: na Goodyear (por «sequestro de quadros» da empresa), na Air France (no processo dito das «camisas rasgadas»), na Peugeot, na construção civil e em tantos outros lugares em que militantes em luta foram objecto de discriminação – e por vezes condenados a prisão prorrogável.

 Eis porque se intensificam as lutas.

 Estas lutas são, de momento, dispersas. Greves dos ferroviários (actualmente de dois dias em cada cinco até Junho), do pessoal do Carrefour (13 de Abril), da Air France (30 de Março), da educação e da investigação (10 de Março), dos serviços médico-sociais da função pública territorial (14 de Fevereiro), dos hospitais (31 de Janeiro), nos estabelecimentos acolhendo pessoas idosas (30 de Janeiro), dos correios (9 de Janeiro), mas também dos organismos sociais, dos electricistas e do gás, na Méteo-France, em sectores químico-petrolíferos, da função pública… Houve mesmo greves inéditas de trabalhadores precarizados como os dos fastfoods e dos salões de cabeleireiro afro…E ainda, em sequência aleatória, desempregados, sem-abrigo, sem-papéis, militantes associativos, reformados, pacifistas, antifascistas, ecologistas, etc. protestaram também. Em toda a França, no passado dia 22 de Março, mais de meio milhão de manifestantes veio à rua para uma grande jornada da acção contra as «reformas Macron».

 Há semanas que os estudantes se mobilizam. Muitos deles opõem-se ao «plano» educativo do governo (generalizando nomeadamente a selecção para a entrada na universidade) e bloqueiam totalmente numerosos centros universitários, em particular em Paris 1 (Tolbiac), Paris 8 (Saint-Denis), Montpellier, Toulouse…Resposta das autoridades à mobilização estudantil? O envio da polícia de choque, a 9 de Abril, para agredir à bastonada os jovens rebeldes no campus de Nanterre! Precisamente no local onde eclodiu a revolta de Maio de 1968…No frontão de uma destas universidades ocupadas pode ler-se este pano: «Em Maio de 68 tiveram medo? Em 2018 vamos fazer pior!»…

 

[Artigo tirado do sitio web portugués ODiario.info, do 18 de abril de 2018]