O Brexit e a engrenagem autocrática da UE

José Goulão - 07 Feb 2019

O Reino Unido aderiu em 1973 à CEE. Tinha então 2,8 milhões de pobres, número que compara com os 14 milhões de hoje; desconhecia praticamente o fenómeno dos sem-abrigo, que hoje são 80 mil, 12 mil dos quais em Londres. As privatizações arrasaram a qualidade e encareceram os serviços essenciais para a vida em sociedade. Hoje são 10 milhões os trabalhadores em regime de precariedade, modalidade que só passou a ser aplicada já com o país na CEE

 Sobre o Brexit fala-se e escreve-se muito, diz-se pouco e o essencial, como norma, fica escondido. Avalia-se o processo segundo as pessoas que encabeçam as tomadas de decisão, resume-se o diferendo à oposição entre eurocépticos e europeístas, atribui-se peso político decisivo ao velho mito do antagonismo entre as ilhas e o continente, montam-se elaboradas análises em torno do acessório e assim se vai dissolvendo o fundamental perante uma opinião pública pouco e mal informada: nas ilhas e no continente.

 Ora o essencial é o tratamento exemplar que os eurocratas, como servidores dos interesses que mexem os cordelinhos da União Europeia, pretendem dar ao processo de saída do Reino Unido – se chegar a haver uma saída, pois a dúvida ainda é legítima.

 Isto é, Bruxelas deseja que a atitude que adoptou perante o Reino Unido, depois de este apresentar a intenção de sair, seja absolutamente dissuasora de qualquer outra tentativa de outro Estado membro para seguir o mesmo caminho. A mensagem transmitida a cada um dos membros da União é óbvia, apesar de implícita: se um país com o estatuto de potência de topo da organização, como o Reino Unido, é obrigado a sujeitar-se a tais humilhações dos seus dirigentes e órgãos institucionais, imagine-se a sorte reservada a um simples plebeu, principalmente um pequeno ou médio país. Se o rolo compressor cilindra o Reino Unido desta maneira, o que não faria a uma Grécia, Portugal, mesmo a uma Itália, Espanha, Polónia se, por absurdo, decidissem requerer a saída. Uma coisa, de facto, é os povos estarem saturados da União Europeia até às raízes dos cabelos e chegarem até a pronunciar-se democraticamente pela saída; outra coisa, bem diferente, seria conseguirem sair e sobreviver nessa condição. A diferença revela quanto valem hoje os mecanismos democráticos.

 A engrenagem autocrática da União Europeia não hesita perante o recurso à chantagem e a comportamentos de vendetta, eficazes para servirem de exemplo. Não é por acaso que em Bruxelas se diz à boca cheia, embora no recato dos bastidores, que «na União Europeia entra-se mas não se sai» – assim se definindo a tão alardeada «solidariedade» para que se cumpra «o sonho» dos «pais fundadores». Mais um mito transformado em causa política para que a doutrina ditatorial do mercado prossiga o seu caminho com a menor dose possível de sobressaltos.

Sugar até ao tutano

 A generalidade das estimativas, devidamente silenciadas, revela que os povos das Ilhas Britânicas ficaram a perder com a entrada do Reino Unido na Comunidade Económica Europeia, hoje União Europeia. Os índices sociais revelam condições de vida hoje bastante mais degradadas para os sectores mais desfavorecidos, enquanto a opulência das grandes fortunas alastrou.

Antes e depois

Antes de aderir à CEE, em 1973, o Reino Unido:

- tinha 2,8 milhões de pobres;

- desconhecia o fenómeno dos sem-abrigo;

- não tinha trabalho precário;

- possuía serviços públicos de qualidade e a preço acessível;

- era a 5.ª potência económica mundial

Em 2018, após 45 anos de CEE e UE, o Reino Unido:

- tem 14 milhões de pobres;

- tem 80 mil sem-abrigo;

- tem 10 milões de trabalhadores em regime precário;

- tem serviços públicos de menor nqualidade e mais caros;

- perspectiva-se como a 10.ª potência económica mundial (a manter-se na UE).

 O Reino Unido aderiu em 1973 à CEE. Tinha então 2,8 milhões de pobres, número que compara com os 14 milhões de hoje; desconhecia praticamente o fenómeno dos sem-abrigo, que hoje são 80 mil, 12 mil dos quais em Londres.

 As privatizações arrasaram a qualidade e encareceram os serviços essenciais para a vida em sociedade. Hoje são 10 milhões os trabalhadores em regime de precariedade, modalidade que só passou a ser aplicada já com o país na CEE.

 No outro lado da escala, se nos anos setenta do século passado a parcela de 20% dos mais ricos tinha um rendimento quatro vezes mais elevado que a dos 20% mais pobres, hoje esses rendimentos são cinco vezes maiores.

 O Reino Unido era a quinta potência económica mundial quando entrou na CEE; por este caminho, as projecções actuais atribuem-lhe o 10º lugar em 2030.

 Através destes dados percebe-se facilmente que a utilização abrangente do termo «eurocéptico» é mal-intencionada e mistificadora; e se a maioria dos detentores dos rendimentos mais elevados votou da mesma maneira que a maioria dos mais desfavorecidos no referendo sobre o Brexit, as razões foram tão semelhantes como as receitas de um cavalheiro da City e o salário de um trabalhador precário de uma fábrica de componentes para telemóveis.

 Dizem igualmente os índices conhecidos, e pouco divulgados, que a economia britânica iria sofrer de facto com o Brexit, mas apenas nos primeiros dois anos; passada essa fase regressaria ao crescimento e a um ritmo que muito rapidamente ultrapassaria o do conjunto dos países da União Europeia.

 Não surpreende, portanto, que o preço imposto pelo Conselho Europeu ao Reino Unido para poder sair da União Europeia seja a enormidade de 65 a 70 mil milhões de euros, avaliados por conta de compromissos estabelecidos nos planos plurianuais e que deixariam de ser cumpridos. Brandir uma verba deste tipo não é apenas uma arbitrariedade; é uma sabotagem da decisão assumida pelos povos do Reino Unido no referendo de Junho de 2016. O que é próprio de uma engrenagem autocrática como a União Europeia.

 Aliás, segundo as sondagens, a vantagem dos partidários do Brexit sairia provavelmente reforçada em novo referendo – sendo essa a verdadeira razão que tem impedido a sua convocação.

Humilhação

 É importante recordar que o governo do Reino Unido levou à União Europeia uma proposta de saída, o chamado Plano Chequers1, no sentido de permanecer no mercado único, sem livre circulação de pessoas, bens e serviços e sem dependência do Tribunal Europeu do Luxemburgo.

 As circunstâncias da rejeição desta opção foram humilhantes, porque a primeira-ministra britânica, Theresa May, chegou a ser obrigada a permanecer no exterior de uma reunião do Conselho Europeu e acabou por aceitar uma cedência total às exigências da União – e que teve como resultado seguinte a derrota na Câmara dos Comuns.

 No entanto, a pretensão assumida agora pela maioria dos deputados de Londres para renegociar o acordo é liminarmente rejeitada por Bruxelas, tal como aconteceu ao Plano Chequers.

 A comunicação social mainstream usa, por sistema, a metodologia mistificadora da fulanização dos processos de decisão para não aprofundar o que verdadeiramente está em causa.

 Seguindo então brevemente por esse caminho, mas alargando o leque dos envolvidos, iremos encontrar a figura do presidente do Conselho Europeu, o neoliberalíssimo polaco Donald Tusk, como o homem de mão dos interesses que transformaram o Brexit num caso exemplar e que impõe a capitulação total do Reino Unido.

 É Tusk quem rejeita liminarmente o Plano Chequers e dá a cara por uma manobra de chantagem que é a imagem de marca do processo dito «negocial»: manter a Irlanda do Norte na União Aduaneira, ao contrário do restante Reino Unido, de modo a que não sejam reinstaladas as fronteiras entre aquele território e a República da Irlanda e não se reabram assim as portas do sangrento conflito irlandês. Ou seja, haveria controlos alfandegários entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido, com a particularidade de alguns deputados eleitos por aquele território serem essenciais à existência da coligação que sustenta o governo de May.

 Donald Tusk é amigo de infância da chanceler alemã Angela Merkel; não é difícil perceber, portanto, a mão alemã em todo o processo de sabotagem e manipulação, estabelecendo-se, a partir daí, o padrão de comportamento da União Europeia. A Alemanha já terá feito, certamente, as contas aos milhares de milhões de euros de quebra do seu PIB com a saída do Reino Unido.

 O que fará ainda mais sentido se ficarmos a conhecer outras figuras que marcaram o processo de «negociações». O francês Michel Barnier, extremamente próximo de Macron2, foi o chefe negociador; mas teve como sua «número dois» precisamente uma alemã, Sabine Weyang, que desempenhou o principal papel executivo no processo.

 Por este caminho da personalização poderíamos ainda tropeçar na figura de Tom Tugendhat, o deputado britânico que chefia a ala anti-Brexit do Partido Conservador de May, e cuja esposa, Anessie Tugendhat, trabalha na Embaixada de França em Londres. França que, a exemplo da Alemanha, está na linha da frente contra o Brexit3.

 Assim se chegou à situação actual: a capitulação de May perante a União foi rejeitada pelo Parlamento de Londres, que pretende o relançamento das negociações para a saída, entretanto já recusada por Bruxelas.

 Deste modo, como alternativa ao «Brexit duro» não haverá um «Brexit suave» porque a União Europeia, além de «negociar» impondo, afirma agora que nada mais há para discutir.

 E a senhora May, há muito com o seu governo preso por arames, mas sobrevivendo, assumiu uma fuga para a frente ao dizer que «para um mau acordo antes acordo nenhum».

 O impasse que a situação sugere é aparente. O governo de Londres já não tem margem de manobra; o Parlamento britânico também não, porque Bruxelas recusa a sua alternativa.

 O mais certo é a crise política desembocar em alterações, a prazo, das posições governamentais e parlamentares de Londres, nas quais o Brexit se dissolva como «verdadeiro pesadelo que é», como foi qualificado por um diplomata de um dos 27, oriundo de um país do Leste.

 Seja como for, o Reino Unido fará sempre o papel de grande derrotado em todo este processo. Só sairá capitulando, pagando o que tem e o que não tem; ficando, deixará bem claro que a opinião dos cidadãos manifestada em referendo não contou para nada.

 Ficou dado o exemplo.

 A União Europeia, como engrenagem autocrática, não admite dissidências.

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  1. O leitor pode aceder na íntegra ao documento oficial britânico aqui.
  2. Europeista convicto, Michel Barnier é também próximo de Nicolas Sarkozy e de Durão Barroso, tendo sido conselheiro de ambos. Ministro em vários governos de direita, pertence ao Conselho de Estado françês. Comissário Europeu. Entre cargos governamentais e na UE, esteve ligado a um grupo de negócios francês na área da biologia e dos medicamentos. Fundou o grupo de reflexão Nova República para promover o diálogo entre políticos e empresários sobre as questões europeias.
  3. Tom Tugendhat é uma figura do establishment político-militar britânico. Aristocrata, tem dupla nacionalidade britânica e francesa. Além da posição da esposa, Anessie Tugendhat, refira-se que o seu sogro dirige o grupo de observadores da OSCE na Ucrânia. Militar desde 2003, no Intelligence Corps (Serviço de Informações do Exército britânico). Fluente em árabe, fez a guerra no Iraque e no Afganistão, tendo recebido condecorações «operacionais» e a Ordem do Império Britânico. Promovido a tenente-coronel em 2013. Faz parte do Comité dos Negócios Estrangeiros. Considerou publicamente o «caso Skripal» como um acto de guerra russo contra o Reino Unido.

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[Artigo tirado do sitio web portugués Abril Abril, do 31 de xaneiro de 2019]