A ascensão do Trumpismo: crise do capital, fracasso da esquerda e a sombra do neofascismo
Longe de uma aberração, o trumpismo é o sintoma mais agudo de uma crise orgânica do capital, gestada por meio século de financeirização, declínio hegemônico e o abandono da esquerda por um projeto socialista
«Prefiro ser um presidente de apenas um mandato fazendo o que creio ser certo do que ser um presidente de dois mandatos às custas de ver a América tornar-se um poder de segunda classe e ver esta nação aceitar a primeira derrota em seus orgulhosos 190 anos de história» (Richard Nixon, 1970, anúncio da invasão do Camboja)
«A partir de hoje, nosso país florescerá e será novamente respeitado em todo o mundo […]. A América em breve será novamente maior, mais forte, e muito mais excepcional do que antes.» (Donald Trump, 2025, discurso de posse)
1.
O que segue são teses concebidas durante o período em que residi nos Estados Unidos, entre 2016 e 2025, durante o qual realizei minhas pesquisas de doutorado e pós-doutorado. Trata-se de tema paralelo àquelas, mas que não pude deixar de observar, informado também pelo meu interesse nos dissidentes americanos, o que acabou tendo uma utilidade inesperada. Mais especificamente, elas foram desenvolvidas, em sua forma inicial, como duas aulas sobre o tema fake news para o curso “What is Information?” que ministrei na Pennsylvania State University em 2024.
Percebi naquela ocasião que a melhor ilustração para o tema seria apresentar as duas campanhas políticas presidenciais recém-encerradas, ao invés de analisar apenas a campanha trumpista, como talvez fosse mais esperado no ambiente liberal de uma universidade americana. Também percebi que a chave crítica para discutir as assim chamadas fake news não é o fact-checking liberal, mas o conceito marxiano de “verdade” sobre o qual ninguém mais quer falar (e ainda menos nos ambientes liberais dos Estados Unidos), que leva em conta a forma social e como ela estrutura a consciência dos diferentes grupos sociais que a integram em sua trajetória histórica: a consciência de classe – ou sua ausência.
2.
Talvez como parte da superficialidade histórica e conceitual dos tempos, o trumpismo é considerado como uma novidade histórica absoluta. O que as teses a seguir sustentam – e esta é a tese geral que sintetiza as demais – é que o trumpismo é a reiteração, ainda que em nível mais elevado e com traços específicos, de um processo histórico que entrelaça a crise do sistema capitalista, o declínio da hegemonia estadunidense, e uma “esquerda” que abandonou a perspectiva socialista, processo este que dura mais de meio século. O trumpismo não pode ser abstraído do declínio hegemônico dos Estados Unidos na economia-mundo capitalista e da crise do próprio sistema capitalista com início nos anos 70.
Durante o esforço de guerra contra os nazistas, segundo o marxista-operaísta italiano Mario Tronti, os Estados Unidos foram palco da mais avançada luta de classes no mundo(1). A situação é narrada por James Boggs, trabalhador negro estadunidense que emigrou para o norte fugindo da segregação, em seu The American Revolution: prevalecia um alto nível de controle democrático dos meios de produção pelos trabalhadores industriais, entre os quais estavam, de maneira inédita, negros, mulheres, professores, artistas, radicais(2). Isto não ficaria sem reação da classe capitalista. Buscando minar o seu alto nível de auto-organização, miraram a pesquisa da cibernética desenvolvida por Norbert Wiener no MIT, originalmente com aplicação militar (balística), a fim de automatizar a produção e livrar-se da “mão rebelde do trabalho”.
Wiener, alarmado, escreveu carta para Walter Reuthers, destacado sindicalista da época, alertando que a aplicação de tal tecnologia aos processos de trabalho iria causar desemprego em massa. A vontade dos capitalistas prevaleceu, no entanto, e a automação cibernética estabeleceu-se nos processos industriais dos Estados Unidos(3). Nesta dialética entre valorização do valor e luta de classes, atingiu-se entre os anos 60 e 70 um nível de automatização que realizou aquilo que Marx, armado com o pensamento dialético, antecipou nos Grundrisse: a emergência do “intelecto geral” objetivado no maquinário (trabalho morto) e a explosão do valor, que se torna uma base mesquinha para as forças produtivas que dispensam o trabalho vivo em níveis historicamente inéditos(4). A quantidade de trabalho abstrato necessária para a produção de mercadorias tende a um mínimo, enquanto explode a produção de populações excedentes. Espraia-se a miséria, o endividamento e o sobretrabalho em meio ao potencial de riqueza abundante e tempo livre.
O capital, no entanto, tratou de gerar seus modos de adiamento da crise, com keynesianismo de guerra, financialização e outsourcing tendo papel central para manter a acumulação na forma de capital fictício. O primeiro ensaio desses mecanismos, ainda anterior ao anacronismo do valor propriamente dito, foi a constituição do complexo militar-industrial, com o intuito de afastar a ameaça de estagnação econômica devido ao fim da guerra: a partir de então a indústria bélica seria um complexo permanente, mesmo que guerra não houvesse, o que obviamente cria a necessidade da guerras periódicas para o escoamento de estoques(5). Mais tarde, nos anos 1970, os efeitos cumulativos da automação na queda da taxa de lucro e a Guerra do Vietnã tornaram os Estados Unidos uma economia deficitária, à época constituindo-se um circuito de dívidas com os países europeus em ascensão.
O próximo “fix” do anacronismo do valor, assim, foi choque promovido por Richard Nixon em 1971, que desatrelou o dólar do padrão-ouro. Isto permitiu aos Estados Unidos seguir sendo o poder hegemônico mundial não apesar, mas através do seu déficit galopante: mantendo-se o dólar a moeda do comércio internacional, estrategicamente desvalorizado, um circuito de dívidas estabeleceu-se com as indústrias relocalizadas no exterior, de forma que os EUA emitem títulos de dívidas e importam mercadorias com esses recursos. A crise do petróleo a partir da articulação da OPEP em 1973 estabeleceu a reciclagem dos petrodólares para títulos americanos, em especial com a Arábia Saudita – não reciclar os dólares, deixou-se claro, seria considerado um ato de guerra(6).
3.
A entrada da China na Organização Mundial do Comércio em 2005 intensificou o processo, propiciando a massiva transferência de capital industrial para um país com mão-de-obra barata e menores custos de regulação e intensificando o circuito de dívidas. Nesse processo se constituíram o rust belt (“vale da ferrugem”) nos Estados Unidos: áreas desindustrializadas após a migração de indústrias para México e China, principalmente, infligidas agora pela epidemia de opioides em meio à falta de perspectivas(7). Esse financiamento pela dívida agora sem as amarras do padrão-ouro financia o complexo militar-industrial americano, que por sua vez passou a ser, em última instância, o garantidor do valor do dólar(8).
Talvez como parte da condição pós-moderna e da superficialidade teórica e histórica dos tempos vigentes, muitos consideram o trumpismo – na sua aproximação com o fascismo e sua unilateralidade agressiva na arena internacional, entre outros aspectos – como uma novidade histórica absoluta. Entretanto, Marcuse já havia detectado uma aproximação com o fascismo em Nixon e sua “mentalidade de gestapo”, e a unilateralidade no desmantelamento de Bretton Woods e do padrão-ouro foi registrada tanto por relatos mainstream como por autores críticos(9). De fato, a continuidade é real: com um intervalo de meio século, Nixon e Trump operam no nível do reordenamento da ordem internacional com o fim de manter a hegemonia estadunidense ameaçada. Como mostraram a partir de diferentes perspectivas Michael Hudson, Immanuel Wallerstein e John Holloway, é dos anos 70, em meio às despesas com a guerra imperialista no Vietnã – o que reflete a rebeldia social tanto no Vietnã quanto nos EUA –, a configuração dos Estados Unidos como uma economia deficitária declinante, que não poderia seguir lastreada no padrão-ouro(10).
A noção corrente de que tanto o estabelecimento quanto o desmantelamento Bretton Woods foram o resultado de “pactuações” não passa de mistificação histórica. “O dólar é nosso, mas o problema é de vocês”, e “eu quero ferrar os estrangeiros antes que eles nos ferrem”, disse John Connally, secretário de tesouro de Nixon, durante as “negociações” para valorização de moedas estrangeiras que em tudo se assemelham às “negociações” de Trump, inclusive nas imposições tarifárias.
Até mesmo o senhor da guerra Henry Kissinger, então secretário de estado de Nixon e “negociador” junto aos representantes franceses, qualificou o choque de Nixon de “unilateralismo brutal”(11). Meio século depois, o que muda é que a dívida dos EUA se tornaram tão volumosas, da ordem das dezenas de trilhões de dólares, que mesmo o país ainda hegemônico teme pela perda de confiança no pagamento de seus títulos de dívida, o que geraria uma crise de confiança no dólar, o chamado “dilema de Trifflin”, como explica Stephen Miran, conselheiro econômico de Trump, em seu relatório que serve de base para o plano trumpista – o país detentor da moeda das transações internacionais acaba vendo-a sobrevalorizada, o que geraria déficit comercial(12).
4.
Tratar-se-ia, então de executar um “Nixon reverso”, reindustrializando os EUA e revertendo os circuitos de dívidas, fazendo uso de tarifas sobre importações e da desvalorização estratégica do dólar. Trata-se de um plano – e é ilusão liberal acreditar que os trumpistas não têm plano nenhum, o que é o outro lado da moeda da naturalização do neoliberalismo por liberais e social-democratas mundo afora. Mesmo em seus momentos que parecem mais estapafúrdios – como a asserção trumpista de que os demais países pagarão pelas taxações, contrariando neoliberais que dizem que o consumidor final americano é quem as pagará, há uma lógica interna: a simultânea desvalorização estratégica do dólar cancelaria a inflação de mercadorias importadas, de maneira que o pagamento das tarifas efetivamente recairia sobre os outros países(13).
Quanto à possibilidade de sucesso deste plano, há que se considerá-lo em dois níveis. O primeiro é quanto à resolução da crise do capital. Nisto o plano falhará (mas deve-se também dizer que ele não é concebido para isso, pois ele sequer reconhece uma crise do capital). Caso o circuito de dívidas – componente essencial da reprodução precária do capitalismo contemporâneo – seja desfeito, outro mecanismo de capital fictício deverá ser constituído, com reverberações imprevisíveis, incluindo a possibilidade de grandes crises financeiras.
Quanto à hegemonia americana, é possível que o plano seja bem-sucedido, o que seria uma espécie de reedição do sucesso de Nixon e corresponde à manutenção do capitalismo em bases cada vez mais precárias. Há profundas contradições, entretanto. A reversão do circuito de dívidas e reindustrialização dos EUA implicaria o conflito com as elites financeiras, que por sua vez estão mediadas com os “investidores” imobiliários (daí saiu a crise de 2008).
Caso não haja alguma forma de acomodação, trata-se de um cenário compatível com um conflito civil. É mais provável, porém, que o trumpismo componha com a elite financeira, traindo os trabalhadores que agitou para eleger-se (como veremos). De qualquer forma, a automação se encarregaria de minguar os postos de trabalho mesmo no caso de uma reindustrialização bem-sucedida, em época na qual até mesmo os processos cognitivos estão sendo automatizados pela inteligência artificial. Em todos os casos a situação seria explosiva, com algum grupo social relevante tendo as suas expectativas frustradas.
5.
O método trumpista, em especial no que se refere aos tarifaços, merece comentários adicionais. Ele foi aprendido quando Trump ainda era empresário do ramo imobiliário e assediava os moradores de seus prédios com aluguel controlado para despejá-los, e assim novos empreendimentos mais lucrativos pudessem ser executados. Essa história de truculência foi contada pelo jornalista Toni Schwartz em artigo na New York Magazine nos anos 1980(14). O próprio Trump qualificou o processo como “horrendo”, e a autenticidade da história é atestada pelo fato de que ele apreciou a reportagem e convidou Schwartz para escrever o seu livro autobiográfico, The Art of the Deal(15).
O assédio agora mudou de cenário, mas o mundo é tratado como se fosse o mesmo condomínio. Isto também ajuda a explicar porque Trump escolheu Scott Bessent para ser o seu secretário do tesouro: trabalhando com George Soros, Bessent foi o mentor da aposta contra a libra esterlina britânica que levou à quebra do Banco da Inglaterra em 1992 (a chamada Black Wednesday), e talvez por isso tenha sido elogiado por colegas por sua “experiência com desastres econômicos” (só se pode entender que seja experiência para provocá-los). A crise levou muitos a perder suas casas. No que se refere à formação de sua coalizão, o deal de Trump consistiu em atrair bilionários com cortes de impostos e (ex-)trabalhadores precarizados pelo neoliberalismo com agitação de corte fascista, que comentamos na próxima tese.
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Referências
Baran, Paul A. & Paul M. Sweezy (1966). Monopoly Capital: An Essay on the American Economic and Social Order. Monthly Review.
Boggs, James (1963). American Revolution: Pages From a Negro Worker’s Notebook. Monthly Review Press. Disponível em http://www.historyisaweapon.com/defcon1/amreboggs.html
Dyer-Witheford, Nick (2015). Cyber-Proletariat: Global Labor in the Digital Vortex. Pluto Press.
Atle Mikkola Kjosen & James Steinhoff (2019). Inhuman Power: Artificial Intelligence and the Future of Capitalism. Pluto Press.
Hudson, Michael (2021). Superimperialism: The Economic Strategy of American Empire. 3rd ed. ISLET. Hummel, Thomas (2024). “Bidenomics in the International Context”, Spectre Journal.
Kissinger, Henry (1979). White House Years. Little, Brown and Company.
Kurz, Robert (2015 [2007]) “Poder mundial e dinheiro mundial: a função econômica da máquina militar dos Estados Unidos no capitalismo global e os motivos ocultos da nova crise financeira.” In Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio, Robert Kurz. Consequência.
Marcuse, Herbert (2001a [1972]). “The Historical Fate of Bourgeois Democracy.” In Towards a Critical Theory of Society, vol. II, Douglas Kellner (ed.), 163-186. Routledge.
Marx, Karl (2011 [1858]) Grundrisse: manucritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. Boitempo.
Miran, Stephen (2024). “A User’s Guide to Restructuring the Global Trading System”. Hudson Bay Capital. https://www.hudsonbaycapital.com/documents/FG/hudsonbay/research/638199_A_Users_Guide_t o_Restructuring_the_Global_Trading_System.pdf
Postone, Moishe (1978). “Necessity, Labor, and Time: A Reinterpretation of the Marxian Critique of Capitalism.” Social Research 45(4). Disponível em https://platypus1917.org/wp- content/uploads/readings/postone_necessitylabortimemarx1978.pdf
Schwarz, Tony (1985). “A Diferent Kind of Donald Trump Story.” New York Magazine, February 11,1985,
Tronti, Mario (2019 [1966]) Workers and Capital. Verso. https://archive.org/details/WorkersAndCapital/page/n399/mode/2up
Trump, Donald J. & Tony Schwarz (1987). The Art of the Deal. Ballantine.
Wallerstein, Immanuel (2006) “The Curve of American Power”. New Left Review 40. https://newleftreview.org/issues/ii40/articles/immanuel-wallerstein-the-curve-of-american-power
Wallerstein, Immanuel (2009) “The Eagle Has Crash Landed”. Foreign Policy. https://foreignpolicy.com/2009/11/11/the- eagle-has-crash-landed/
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Notas
[1] Tronti (2019 [1966]), 400.
[2] Boggs (1963).
[3] Ver Dyer-Witheford (2015), cap. 3.
[4] Marx (2011 [1858]), 578-596; Postone (2017); Kurz (2019 [1986])
[5] Baran & Sweezy (1966), cap. 7.
[6] Como testemunha Michael Hudson, que participou de reuniões na Departamento de Estado à época do arranjo da reciclagem dos petrodólares. Ver Hudson (2021), 418; Alkhorshid, Wolff & Hudson (2024).
[7] Sobre o desemparo vivido pela população das regiões empobrecidas dos EUA, ver Hochschild (2016).
[8] Sobre o circuito de dívidas e fim do padrão-ouro com ênfase no imperialismo americano e reconfiguração do sistema financeiro internacional, ver Hudson (2021); para uma análise em nível mais alto de abstração com foco na forma-valor e sua crise, ver Kurz (2015 [2007]).
[9] Ver Marcuse (2001a [1972]) sobre a era Nixon, e sua carta ao The New York Times sobre o escândalo de Watergate e a “mentalidade de gestapo” em Marcuse (2001b [1972]); sobre a sua unilateralidade imperial, ver Hudson (2021).
[10] Wallerstein (2006) e (2009) opera a partir de sua perspectiva do sistema-mundo, dando destaque à rebeldia de 1968; Hudson (2021), como economista marxista que trabalhou por décadas no sistema financeiro, analisa as reconfigurações do sistema financeiro internacional em relação com a ação imperialista dos EUA; Holloway (2022), cap. 30-33, destaca o papel da rebeldia social (o medo da “ralé” que vem pelo menos desde Hegel, passando por Keynes) para o descolamento do dinheiro do padrão- ouro. Kurz (2015 [2007]) elide o papel da Guerra do Vietnã, o que talvez em parte se deva ao seu maior nível de abstração, mas revela também desatenção para com o conflito social na economia política (como talvez dissesse Holloway ou mesmo Wallerstein), mas segue útil para a compreensão no nível de abstração (teoria do valor) que está ausente em Hudson e Wallerstein.
[11] Kissinger (1979), 962.
[12] Miran (2024).
[13] Ver Miran (2024).
[14] Schwarz (1985).
[15] Schwarz (1985), 36;
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[Artigo tirado do sitio web aterraéredonda, do 2 de novembro de 2025]