A austeridade anunciada no Reino Unido

Maxime Perriot - 17 Out 2022

Os países que adotaram políticas de austeridade drásticas estão entre os mais desiguais do mundo. O Reino Unido já é um deles, mesmo antes do início do mandato de Liz Truss. Já marcado por quase 40 anos de austeridade, o país é o segundo mais desigual entre os países do G7, atrás dos Estados Unidos

 Nomeada em 6 de setembro de 2022, Liz Truss, a nova primeira-ministra do Reino Unido, tira sua legitimidade de apenas 172.000 membros do Partido Conservador[1]. Este «eleitorado», em sua maioria mais idoso e mais rico, votou por um programa de redução de impostos e desregulamentação da economia britânica. Como para tranquilizá-los, a nova primeira-ministra anunciou logo após sua eleição que não estava là para «distribuir subsídios»[2]. Ao mesmo tempo, o novo Chanceler do Tesouro[3], Kwasi Kwarteng, definiu o objetivo principal do governo como «estabilidade monetária e disciplina fiscal a médio prazo»[4]. Nada de surpreendente vindo de uma nova primeira-ministra que reivindica Margaret Thatcher como modelo. Esta última tinha endurecido severamente as condições necessárias para organizar uma greve no Reino Unido, e a primeira quer aumentar a porcentagem mínima de membros do sindicato presentes na consulta formal antes de uma greve[5]. Liz Truss também quer um serviço mínimo garantido nas infraestruturas nacionais, como trens e ônibus, quando há uma greve, o que permitiria que as greves fossem legalmente interrompidas[6]. Entretanto, o zelo neoliberal da nova primeira-ministra foi rapidamente refreado por um primeiro revés: um espetacular recuo sobre as primeiras medidas anunciadas.

 Em 23 de setembro de 2022, Liz Truss anuncia um plano que combinava umas ajudas mal repartidas para ajudar as famílias britânicas frente a inflação (detalhado abaixo) com grandes cortes de impostos para os mais ricos. O objetivo do governo era reduzir a taxa de imposto de 45 % para 40 % para contribuintes com renda superior a £ 150.000 (aproximadamente 900.000 reais)[7].

 Um corte fiscal representando 1,5 % do PIB, sem precedentes nos últimos 50 anos. Dez dias depois, diante da ira dos sindicatos, dos movimentos sociais, da oposição trabalhista e frente ao pânico dos mercados financeiros, que provocaram a queda da libra esterlina e o aumento das taxas de empréstimo do governo[8], a primeira-ministra anuncia um recuo nos cortes fiscais oferecidos aos mais ricos. De facto, os mercados financeiros entraram em pânico com o aumento dos gastos e a queda da receita do governo, antecipando um forte aumento da dívida pública. Mesmo o FMI, que não é de se ofender com medidas que favorecem os ricos, expressou publicamente sua preocupação com os anúncios feitos por Liz Truss e Kwasi Kwarteng, temendo um «aumento da desigualdade»[9]. Este retrocesso espetacular e extremamente raro, especialmente durante os primeiros dias do mandato de uma primeira-ministra, fragiliza Liz Truss, que reconheu que suas políticas favoreceriam os ricos[10]. Apesar disso, a inquilina do 10 Downing Street anunciou que não havia desistido de reduzir o nível de tributação dos mais ricos[11]. Para entender este episódio, vamos examinar agora a chegada de Liz Truss ao poder, desde o contexto de sua eleição até suas primeiras medidas, e as conseqüências esperadas de suas políticas.

 Liz Truss tomou posse em Downing Street contra um cenário de inflação não compensada pelo aumento dos salários. Causada nomedamente por uma crise energética e fortemente ampliada pela especulação, esta inflação atingiu mais de 10 % em julho de 2022[12]. Combinada com a queda da atividade econômica, a inflação provocou um profundo descontentamento social caracterizado por um dos mais maciços movimentos de greve em décadas. Ele mobilizou várias profissões: ferroviários, estivadores, advogado(a)s criminais e professores da função pública[13]. O protesto também levou ao movimento Don’t Pay UK. Foi lançada uma petição para deixar de pagar as contas de energia se um milhão de pessoas se comprometerem a fazê-lo até 1 de outubro de 2022[14]. Estes movimentos estão explodindo em um país particularmente atingido pelo aumento dos preços da energia, onde o preço do gás foi multiplicado por sete em um ano[15].

 Apesar de sua vontade de dar mais um passo na desvinculação entre o estado e a economia, Liz Truss está sob pressão da Don’t Pay, dos sindicatos (embora as greves tenham parado com a morte de Elizabeth II), de organizações não-governamentais e de alguns economistas. Não teve outra escolha senão dar uma solução ao estouro dos preços da energia, especialmente porque os valores da conta de energia deveriam quase dobrar até 1 de outubro de 2022[16]. Muitas famílias britânicas não seriam capazes de pagar, o que iria amplificar a ira social e a tornaria incontrolável.

 Desde do início do seu mandato, Liz Truss anunciou uma série de medidas - incluindo um congelamento de preços de energia e cortes de impostos - que mais favorecem os jà mais ricos em detrimento dos mais pobres.

 A primeira medida chave é o congelamento dos preços da energia para as famílias durante dois anos. Assim a fatura energética de um lar britânico padrão chegara a 2.500 libras (cerca de 15.000 R$) por ano em suas contas de energia[17]. Para uma família média do Reino Unido, isto representará uma economia de cerca de 1.000 libras por ano. Se nada tivesse sido feito, as contas de energia teriam quase dobrado até outubro de 2022, até chegar a uma média de 3.549 libras por ano. Finalmente, deve ser observado que o congelamento do preço da energia vem em cima de uma redução de £400 nas contas concedidas pelo governo anterior.

 Entretanto, de acordo com a Resolution Fondation, as primeiras medidas anunciadas por Liz Truss – o congelamento do preço da energia e os cortes de impostos anunciados para a primavera de 2023 – pouparão, em média, 4.700 libras aos 10 % dos lares mais ricos em comparação com o que eles teriam ganho se nada tivesse sido feito. Para os 10 % mais pobres, o benefício das medidas anunciadas por Liz Truss alcançará, em média, apenas 2.200 libras[18].

 Há duas razões principais para este diferencial. A primeira é que os lares mais ricos consomem muito mais energia do que os mais pobres. Suas casas são muito maiores e, portanto, requerem mais aquecimento, e seus carros são maiores e mais numerosos e, portanto, consomem mais energia. Como as medidas congelam os preços da energia sem visar uma determinada população, elas beneficiam – em termos absolutos – aqueles que mais consomem. Por outro lado, a distância entre o benefício das primeiras medidas governamentais anunciadas para os mais pobres e os mais ricos é explicada pelo corte de impostos anunciado por Liz Truss para a próxima primavera. Este corte – que beneficiará os lares mais ricos 250 vezes mais do que os mais pobres[19] – será repassado à caixa do seguro social nacional. Portanto, significa menos dinheiro para uma caixa que serve para financiar a assistência social e o sistema de saúde pública britânico. A primeira-ministra assumiu esta política fiscal profundamente desigual, dizendo que nem todas as políticas econômicas devem ser vistas «através da lente da redistribuição»[20].

 Liz Truss também decidiu suspender temporariamente uma taxa sobre a energia visando a financiar a transição energética para a neutralidade de carbono, com o objetivo de baixar as contas de energia dos lares britânicos[21]. Após o terrível verão de 2022, fica claro que a transição ecológica e energética é uma prioridade que deve mobilizar recursos maciços. Contas mais baixas para as famílias devem ser obtidas por outros meios que não seja a suspensão de uma taxa, embora insuficiente, dedicada a este objetivo.

Liz Truss reaviva a produção de gás xistoso para enfrentar a crise energética

 Em um esforço para produzir mais energia e ser menos dependente da produção estrangeira, Liz Truss decidiu levantar uma moratória sobre a produção de gás xistoso[22]. Ao invés de penalizar o padrão de vida dos mais ricos que mais poluem – em 2019, os 10 % mais ricos foram responsáveis por metade das emissões de dióxido de carbono do mundo[23] – usando regulamentação ou a taxação, Liz Truss decidiu reavivar a fratura hidráulica.

 A fratura hidráulica, muito utilizada nos Estados Unidos, teve uma série de consequências nefastas: destruição de paisagens, terremotos locais, poluição das águas, cânceres, nascimentos prematuros, danos ao sistema nervoso e respiratório de pessoas que vivem perto de poços de petróleo ou de gás, e perturbação das rotas de migração dos aves[24]. Durante a extração do gás de xisto, 4 % do metano liberado durante a operação – um gás com efeito estufa 25 vezes mais potente que o CO2 – acaba na atmosfera.

 Um estudo da National Oceanic and Atmospheric Administration das emissões de poços de gás no condado de Weld, Colorado, constatou que essas infraestruturas utilizadas para extrair o gás emitiam o equivalente a 1 a 3 milhões de carros.

 O pacote de medidas de apoio da Liz Truss custará ao governo britânico £150 bilhões[25], que pagará a diferença entre o preço de mercado cobrado pelos fornecedores de energia e o custo realmente pago pelos consumidores. Isto é mais do dobro da quantidade que foi gasta com o trabalho em horário reduzido durante a pandemia de covid-19.

 Para financiar estes novos gastos, Liz Truss poderia ter cobrado impostos sobre grandes empresas, sobre as famílias mais ricas do país, ou tributado os lucros excecionais das grandes empresas de energia. Em vez disso, ela optou por basear o congelamento do preço da energia (e os cortes de impostos para os mais ricos) na dívida. Dívida que está se tornando cada vez mais cara por duas razões:

 O Banco da Inglaterra vai aumentar suas taxas de juros [26].

 Diante do aumento dos gastos públicos anunciados pelo governo, a especulação nos mercados financeiros levou a um aumento das taxas de juros dos títulos do Tesouro britânico a 10 anos para cerca de 3 %[27].

 As taxas de juros dos títulos britânicos estão em seu nível mais alto por dez anos. Assim, o peso da dívida está aumentando e os £150 bilhões emprestados para financiar as medidas anunciadas por Liz Truss serão reembolsados durante anos pelo contribuinte britânico, que pagará não £150 bilhões mas £195 bilhões (£150 bilhões + 3 % de juros anuais, se todos os títulos forem emitidos a 10 anos).

 As primeiras medidas de Liz Truss, que visam a «disciplina fiscal», irão aumentar consideravelmente o deficit público e a dívida pública. Podemos, portanto, esperar um retorno violento da austeridade no Reino Unido nos próximos meses e anos. De facto, o legado de thatcheriano de Liz Truss não deixa dúvidas quanto ao que acontecerá em seguida. Os £2,365 trilhões de dívida pública, equivalentes a 99,6 % do PIB[28], fornecerão a desculpa perfeita para desvincular o Estado da economia, privatizar e destruir os mecanismos de redistribuição. A austeridade afeta principalmente os mais pobres, porque reduz os gastos sociais – abonos de família, benefícios de moradia e invalidez, serviços sociais, benefícios sociais mínimos – que são vitais para uma grande parte da população. A austeridade também ataca os serviços públicos, que são um poderoso fator de redução das desigualdades, pois todos têm acesso a eles. Sem surpresas, os países que adotaram políticas de austeridade drásticas estão entre os mais desiguais do mundo[29]. O Reino Unido já é um deles, mesmo antes do início do mandato de Liz Truss. Já marcado por quase 40 anos de austeridade, o país é o segundo mais desigual entre os países do G7, atrás dos Estados Unidos[30].

 A política de austeridade será tanto mais perigosa quanto o nível da dívida privada no Reino Unido é preocupante. Com uma dívida privada equivalente a 322,8 % do PIB em 2020, o risco de uma crise da dívida privada no país é real. Entretanto, ao reduzir a presença do Estado na economia, Liz Truss transferirá para as famílias os gastos do Estado, aumentando assim seus gastos totais e, portanto, seus níveis de endividamento. Em um contexto de inflação não compensada por um aumento dos salários e dos benefícios sociais, tal política poderia fazer explodir os níveis da dívida privada (especialmente o crédito ao consumidor). Tal cenário poderia então provocar uma crise da dívida privada que poderia levar os bancos à falência e insuflar a dívida do Estado se este decidisse salvá-los, como aconteceu em 2008-2009 após a crise do subprime.

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Notas:

[1] Esses aderentes votaram para eleger um susbstituto(a) para Boris Jonhson que entregou sua demissão em 17 de julho de 2022.

[2] «Royaume-Uni : le grand écart de Liz Truss»[Reino Unido: O grande desvio de Liz Truss] https://www.lemonde.fr/idees/article/2022/09/06/royaume-uni-le-grand-ecart-de-liz-truss_6140366_3232.html

[3] Ministro das finanças.

[4] Ibid.

[5] O Trade Union Act de 2016 tornou obrigatória uma consulta formal de pelo menos 50 % dos membros de um sindicato para lançar uma greve. Liz Truss quer elevar este patamar.

[6] Marie Billon, «Au Royaume-Uni, la nouvelle première ministre Liz Truss face à la contestation sociale», Médiapart, 05/09/2022, https://www.mediapart.fr/journal/international/050922/au-royaume-uni-la-nouvelle-premiere-ministre-liz-truss-face-la-contestation-sociale

[7] «Liz Truss et le gouvernement britannique reviennent sur la baisse d’impôt sur le revenu pour les plus riches», Le Monde, 03/10/2022, https://www.lemonde.fr/international/article/2022/10/03/liz-truss-et-le-gouvernement-britannique-reviennent-sur-la-baisse-d-impot-sur-le-revenu-pour-les-plus-riches_6144160_3210.html

[8] O Bank of England interveio através da compra de obrigações britânicas para limitar o custo da dívida britânica e conter a queda da libra.

[9] «Liz Truss assume ses baisses d’impôts «controversées» malgré le désaveu des marchés», France 24, 29/09/2022,https://www.france24.com/fr/info-en-continu/20220929-liz-truss-assume-ses-baisses-d-imp%C3%B4ts-controvers%C3%A9es-malgr%C3%A9-le-d%C3%A9savoeu-des-march%C3%A9s

[10] «Londres annonce des mesures pour relancer sa croissance: gel des factures énergétiques, baisses d’impôts, dérégulation…», Le Monde, 23/09/2022, https://www.lemonde.fr/international/article/2022/09/23/gel-des-factures-energetiques-baisses-d-impots-deregulation-londres-annonce-des-mesures-pour-relancer-sa-croissance_6142877_3210.html

[11] «Liz Truss says she wants to cut top rate of tax eventually and says she does trust Kwasi Kwarteng as chancellor – as it happened», The Guardian, 04/10/2022, https://www.theguardian.com/politics/live/2022/oct/04/liz-truss-benefits-inflation-kwasi-kwarteng-conservative-party-conference-live-updates

[12] «Liz Truss, nouvelle première ministre britannique, promet de sortir le Royaume-Uni de la «tempête»», Le Monde, 06/09/2022, https://www.lemonde.fr/international/article/2022/09/06/liz-truss-promet-de-sortir-le-royaume-uni-de-la-tempete_6140456_3210.html

[13] Marie Billon, art. citado.

[14] Até 16 de setembro, quasi 189 000 pessoas tinham assinada esta petição.

[15] «Royaume-Uni: Liz Truss annonce un gel des prix de l’énergie», Médiapart avec AFP, 08/09/2022, https://www.mediapart.fr/journal/fil-dactualites/080922/royaume-uni-liz-truss-annonce-un-gel-des-prix-de-l-energie

[16] A. G com AFP, «Royaume-Uni : Liz Truss va annoncer un paquet d’aides massif pour soutenir l’économie», BFM TV, 08/09/2022, https://www.bfmtv.com/international/europe/angleterre/royaume-uni-liz-truss-va-annoncer-un-paquet-d-aides-massif-pour-soutenir-l-economie_AD-202209080022.html

[17] «Royaume-Uni: Liz Truss annonce un gel des prix de l’énergie», art. citado.

[18] Richard Partington, «Liz truss energy and tax plan “will give richest families twice as much support», The Guardian, 13/09/2022, https://www.theguardian.com/business/2022/sep/13/liz-truss-energy-and-tax-plan-will-give-richest-families-twice-as-much-support

[19] Peter Qalker, Rupert Neate, «Truss to push ahead with low-tax economy despite calls for caution», The Guardian, 04/09/2022, https://www.theguardian.com/politics/2022/sep/04/liz-truss-energy-prices-action-plan

[20] Ibid.

[21] «Royaume-Uni: Liz Truss annonce un gel des prix de l’énergie», art. citado.

[22] Alex Lawson, Jessica Elgot, «Liz Truss’s energy bailout: key points at a glance», The Guardian, 08/09/2022, https://www.theguardian.com/business/2022/sep/08/liz-truss-energy-bills-plan-key-points

[23] Adrien Pécout, «Pollution: les populations les plus riches sont les plus émettrices», Le Monde, 07/12/2021, https://www.lemonde.fr/economie/article/2021/12/07/pollution-les-populations-les-plus-riches-sont-les-plus-emettrices_6104988_3234.html

[24] Yona Helaoua, «L’exploitation du gaz de schiste dévaste les États-Unis», Reporterre, 27/06/2019, https://reporterre.net/L-exploitation-du-gaz-de-schiste-devaste-les-Etats-Unis

[25] «Royaume-Uni: Liz Truss annonce un gel des prix de l’énergie», art. citado.

[26] A. G com AFP, art. citado.

[27] Isto quer dizer que o estado britânico pagará, cada ano, 3 % da quantia tomada a título de juros aos credores que terão comprado uma obrigação com prazo de 10 anos.

[28] Em março 2022, números do Office for National Statistics britânico.

[29] «Rapport Oxfam: la poursuite de l’austérité risque de créer jusqu’à 25 millions de «nouveaux pauvres» en Europe d’ici à 2025», Oxfam, https://www.oxfamfrance.org/communiques-de-presse/rapport-oxfam-la-poursuite-de-lausterite-risque-de-creer-jusqua-25-millions-de-nouveaux-pauvres-en-europe-dici-a-2025/

[30] Peter Qalker, Rupert Neate, art. citado.

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[Artigo tirado do sitio web do CADTM, do 9 de outubro de 2022]