A descolonização encalhada

Prabhat Patnaik - 24 Ago 2023

A África francófona está, portanto, à beira da guerra; mas, se houver guerra, será uma guerra por procuração travada pelo imperialismo contra os países que desejam avançar o processo de descolonização que fora bloqueado logo no seu início

 Grande parte do mundo ex-colonial, tendo estabelecido regimes dirigistas para arrancar ao capital metropolitano o controlo dos seus recursos naturais e para construir indústrias por trás de muros protecionistas, procurou ser reintegrado na hegemonia imperialista através da ordem económica neoliberal. Mas houve um segmento deste mundo em que a própria descolonização nunca foi concluída: As antigas colónias francesas da África Ocidental pertencem a este segmento. Apesar de os administradores franceses terem sido substituídos por pessoal local, elas não conseguiram, ainda que temporariamente, livrar-se da hegemonia francesa e, portanto, da hegemonia metropolitana.

 Tropas francesas permaneceram estacionadas em cada um desses países; e eles estavam atados a uma união monetária com a França, em que a sua moeda, o franco CFA (iniciado em 1945), tinha uma taxa de câmbio fixa com o antigo franco francês (e, posteriormente, com o euro), uma taxa de câmbio que, além disso, foi sempre mantida um pouco sobrevalorizada. Em qualquer união monetária, o segmento que tem a moeda sobrevalorizada torna-se menos competitivo e é afetado pela desindustrialização e pelo desemprego, como aconteceu com a Alemanha de Leste após a "reunificação" alemã.

 No caso da África francófona, a união monetária com a França a uma taxa de câmbio sobrevalorizada condenou estes países a uma ausência permanente de indústria: nenhum bem industrial podia ser produzido internamente em qualquer país porque era sempre mais barato importá-lo de França (o que também dava a esta última um mercado perenemente cativo). Por outro lado, as commodities primárias exportadas por estes países tinham de ser vendidas no mercado internacional a preços fixados em dólares (e, portanto, em francos) e uma moeda sobrevalorizada significava simplesmente que os salários internos tinham de ser ajustados em baixa a fim de manter estes países competitivos a nível internacional nos mercados de commodities primárias. O resultado líquido foi, portanto, que a população local não ganhou em termos de taxas salariais, mas perdeu em termos de emprego (o que também teve efeitos de segunda ordem nas taxas salariais). Em suma, estes países estavam condenados a um estado permanente de subdesenvolvimento e de pobreza abjeta.

 Mas isso não foi tudo. A maior parte das suas reservas de divisas (pelo menos 50%) era mantida em França, como havia acontecido com a Índia colonial, o que aumentava os recursos cambiais disponíveis para a França. E para manter a taxa de câmbio fixada com a moeda francesa, considerou-se necessário que a sua política monetária deveria estar alinhada com a da França, pelo que tinha de ser controlada pelas autoridades monetárias francesas; isto retirou do seu arsenal um possível instrumento para iniciar o desenvolvimento económico.

 Este estado de coisas bizarro foi mantido politicamente por uma variedade de medidas, desde eleições fraudulentas por trás de uma fachada democrática, a golpes de Estado e até assassinatos. O caso mais gritante foi o de Thomas Sankara, um militar burquinense, revolucionário marxista e pan-africanista, que chegou ao poder no Burkina Faso em 1983 e que quiz as tropas francesas fora do seu país. Sankara, hoje uma figura emblemática em África, foi assassinado por um dos seus colaboradores, que alegadamente trabalhava para o imperialismo, e que lhe sucedeu na presidência do país. Foi formada uma organização, a CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental), dominada por dirigentes pró-ocidentais da África Ocidental, a qual assumiu a responsabilidade de preservar o status quo e portanto de promover a causa do imperialismo.

 Porém, ultimamente tem havido um levantamento popular anti-imperialista em vários países da África francófona. Na Guiné, no Mali, no Chade e no Burkina Faso, chegaram ao poder nos últimos anos novos governos anti-imperialistas que querem as tropas francesas fora dos seus países; e no Mali conseguiram mesmo fazer com que saíssem as tropas francesas.

 O Níger é o mais recente país a juntar-se a este grupo. Os governos deste grupo de países chegaram ao poder através de golpes de Estado; e no caso do Níger o golpe foi contra um governo eleito. Este facto permitiu que os países imperialistas desqualificarem estes governos recém-instalados como "anti-democráticos", embora os países imperialistas nunca tivessem tomado uma posição semelhante em relação aos golpes de Estado que instalam regimes pró-imperialistas de direita.

 A ironia deste duplo discurso imperialista ficou bem evidente recentemente. O novo governo do Níger chegou ao poder através de um golpe de Estado da guarda presidencial, um segmento de elite das forças armadas, contra o governo eleito do Presidente Bazoum, que fora pró-ocidental e pró-EUA, chegando ao ponto de pedir um aumento do número de tropas francesas estacionadas no país. Victoria Nuland, a vice-secretária de Estado neo-con dos EUA, foi encontrar-se com um dos líderes do golpe, que havia recebido treino militar nos EUA, a fim de "persuadir" o novo governo do Níger a respeitar a democracia e a repor Bazoum no poder. No entanto, a mesma Victoria Nuland foi diretamente responsável pela organização do golpe de Estado na Ucrânia, em 2014, que afastou do poder Viktor Yanukovich, o presidente eleito daquele país, um acontecimento que desencadeou a cadeia de acontecimentos que conduziu à atual guerra trágica naquele país. Por outras palavras, a preocupação imperialista não é realmente com a democracia, mas sim com a perpetuação da hegemonia imperialista.

 O argumento que sustenta a existência de governos eleitos nos países francófonos pode parecer corriqueiro; mas a realidade é que muitos políticos pró-imperialistas da África Ocidental têm acumulado enormes riquezas pessoais por estarem em conluio com o governo francês e com os interesses empresariais franceses, permitindo que estes últimos explorem os valiosos recursos naturais dos seus países (o Níger, por exemplo, tem ricos depósitos de urânio que são necessários à França para gerar eletricidade). Com essas enormes riquezas mal adquiridas compram votos e, com a ajuda adicional de fraudes, conseguem ganhar eleições. Os governos "eleitos", em suma, não são entidades que gozam de apoio popular; são constituídos por políticos corruptos que manipulam as eleições para se manterem no poder.

 Por outro lado, em muitos destes países, segmentos do exército constituem o verdadeiro local de implantação de ideias revolucionárias e patrióticas. Não é de surpreender que o golpe de Estado no Níger tenha sido amplamente saudado pela população local, cuja esmagadora maioria, mesmo de acordo com as sondagens de opinião pública ocidentais, quer a França fora do seu país.

 A corrupção associada ao processo eleitoral é mais claramente evidente no caso da Nigéria contemporânea, onde o presidente eleito, Bola Tinubu, acumulou uma enorme riqueza, alegadamente através de operações de branqueamento de capitais por conta de um grupo de traficantes de droga, com quem tinha feito amizade quando esteve nos Estados Unidos (MROnline, 12 de agosto). De regresso à Nigéria, encontrou-se entre os políticos mais ricos daquele país, tendo alegadamente comprado votos para ser eleito presidente do país. Ele está sempre em estreito contacto com a embaixada dos EUA na Nigéria e, após o golpe do Níger, decidiu cortar o fornecimento de eletricidade da Nigéria ao país vizinho, numa imposição unilateral de sanções. Além disso, sendo o atual presidente da CEDEAO, tentou colocar esta organização contra o atual regime anti-imperialista do Níger. Na sua qualidade de presidente, anunciou que, a menos que o antigo presidente eleito do Níger seja reintegrado no cargo, a CEDEAO interviria militarmente no Níger para o fazer regressar.

 Infelizmente para ele e felizmente para as forças anti-imperialistas da África francófona, o Senado do seu próprio país não aprovou qualquer intervenção militar no Níger. E a Guiné, o Burkina Faso e o Mali já anunciaram que, se houver uma intervenção militar contra o Níger, também intervirão militarmente para defender o novo governo do Níger.

 No entanto, apesar de tudo isto, a CEDEAO não abandonou os seus planos de intervenção militar e há informações de que estão a ser reunidas tropas nas fronteiras do Níger. A África francófona está, portanto, à beira da guerra; mas, se houver guerra, será uma guerra por procuração travada pelo imperialismo contra os países que desejam avançar o processo de descolonização que fora bloqueado logo no seu início. É significativo que os próprios países imperialistas tenham considerado brevemente uma intervenção militar contra o Níger, antes de abandonarem a ideia e deixarem que a CEDEAO avançasse com planos de intervenção militar como seu representante.

 É notável que os novos regimes da África francófona olhem para a Rússia para os ajudar na sua luta contra o imperialismo e invoquem frequentemente o papel que a União Soviética desempenhou na luta anti-imperialista do terceiro mundo. Infelizmente, a União Soviética já não existe e a Rússia está longe de ser o seu sucessor ideológico; mas continua a ter credibilidade porque se defende contra o imperialismo num teatro de ação diferente.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 20 de agosto de 2023]