A nova rota da seda e a atual encruzilhada histórica

Diego Pautasso - 04 Out 2019

A Nova Roda da Seda é nitidamente uma estratégia chinesa para i) integrar a Eurásia, ii) consolidar um novo sistema sinocêntrico e iii) criar as condições para a China se firmar como potência mundial. É a um só tempo uma estratégia e um discurso para legitimar sua ascensão em parâmetro distintos daqueles enunciados pelos EUA no pós-Guerra Fria

 O desenvolvimento da China tem sido um dos mais notáveis processos geoeconômicos da história, pela velocidade e dimensão (territorial e demográfica). Compreender essa singular experiência tem sido meu desafio como pesquisador há uma década e meia.

 Atualmente, o foco da preocupação tem sido compreender como esta experiência chinesa entrelaça as dimensões geoeconômicas e geopolíticas na chamada Nova Rota da Seda (ou Belt and Road Initiative/BRI). Para tanto, este artigo expõe um resumo de contribuições sobre diversas facetas da iniciativa de Pequim de integrar a Eurásia – e, como defendemos – conformar um projeto de globalização com características chinesas. Assim, optei por manter as referências originais (não citadas ao final do artigo) e indicar os artigos já publicados para quem tiver interesse de aprofundar a leitura explorar a bibliografia.

China: da reconstrução nacional à assertividade global

 O ponto inicial é compreender como a BRI resulta de um complexo processo de reconstrução nacional iniciado com a Revolução de 1949. A primeira geração de dirigentes liderada por Mao Tsé-tung tornou o país independente, retomou a integração territorial, lançou os alicerces da indústria de base e da infraestrutura física (transportes, comunicação e energia). A segunda geração, tendo à frente Deng Xiaoping, lançou a política de Reforma e Abertura em meados dos anos 1970, retomando o processo acelerado de desenvolvimento, internalizando tecnologia, diminuído o atraso em relação aos países desenvolvidos e criando novos padrões institucionais para o país. A terceira geração, sob a coordenação de Jiang Zemin (1993-2003), teve o desafio de resistir à conjuntura decorrente do colapso do campo soviético e ainda dar continuidade e aprofundar tais políticas iniciadas por Deng. A partir do século XXI, com a quarta geração de Hu Jintao (2003-13) e a quinta de Xi Jinping (2013-…), a inserção internacional chinesa ganhou novos contornos.

 Com o fortalecimento chinês, o país passou a exercer maior protagonismo junto às organizações internacionais. Como destaca Zhao (2013), a diplomacia chinesa ficou mais assertiva, deixando de lado a política externa de baixo perfil de Deng, sobretudo em temas crucias dos seus interesses nacionais, como bem ilustra a presença na África e o envolvimento securitário no Mar do Sul da China. Nessa direção, a assertividade e o ativismo no espaço regional é precondição para sua consolidação como potência mundial. Daí a importância de conduzir e liderar os processos de integração regionais, direcionados tanto para o Pacífico (ASEAN Plus Three e Regional Comprehensive Economic Partnership também chamado de ASEAN+6) e para a Eurásia (Organização para a Cooperação de Xangai). Com efeito, a Nova Rota da Seda Continental e Marítima (One Belt, One Road, depois BRI) lançada pelo governo chinês visa a dar base física e argumento político para integrar toda a Eurásia.

A política chinesa da Nova Rota da Seda

 A Nova Rota da Seda foi apresentada por Xi Jinping em 2013. A Belt and Road Initiative (BRI), logo foi objeto, em maio de 2017, do seu primeiro Fórum (Belt and Road Forum) – a ser realizado bianualmente. O documento elaborado pelos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e do Comércio e pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma tinha como título Vision and Actionson Jointly Building Silk Road Economic Beltand 21st-Century Maritime Silk Road[1]. O documento enfatiza que há mais de dois milênios atrás as pessoas integraram civilizações da Ásia, Europa e África através da Rota da Seda. Segundo o governo chinês, a Nova Rota da Seda busca os seguintes elementos da cooperação: a coordenação das políticas, a conectividade de instalações, o comércio desimpedido, a integração financeira e o intercâmbio de pessoas. Para tanto, os objetivos são alinhar e coordenar as estratégias de desenvolvimento desses países; criar demandas e oportunidades de emprego; promover confiança, paz e prosperidade.

 O plano deixa claro a disposição do governo chinês em arcar com mais responsabilidades e obrigações dentro das suas possibilidades e de promover os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica. Segundo o documento, a Nova Rota subdivide-se no Cinturão Econômico ligando a China-Ásia Central-Rússia-Europa (Báltico); e a Rota Marítima, projetada para ir da costa da China para a Europa através do Mar do Sul da China e do Oceano Índico em uma rota, e da costa da China através do Mar do Sul da China para o Pacífico Sul na outra.

 Ora, além de ser o vetor central da política externa da China, a integração eurasiática proposta por Pequim representa a etapa regional do projeto chinês de globalização. Esse projeto recria o sistema sinocêntrico e tensiona com a primazia global estadunidense, convertendo-se no epicentro de uma contradição crucial para compreender os desdobramentos da transição sistêmica em curso. Há, nesse quadro, estratégias distintas em disputa entre potências (Estados Unidos e China, sobretudo) cuja acomodação e conflitos são incertos.

 Trata-se de um processo de integração, diferente do paradigma neoliberal, centrado na produção/comércio via os “cinco fatores de conectividade”, nomeadamente: a) comunicação política; b) conectividade de infraestrutura; c) comércio desimpedido; d) circulação monetária; e) entendimento entre pessoas (YIWEI, 2016). Ademais, cumpre diversos objetivos articulados para a China como, primeiro e imediatamente, criar demanda para a supercapacidade ociosa da indústria nacional. Segundo, ampliar a segurança em recursos naturais e alimentares, sobretudo energéticos, evitando o eventual estrangulamento em estreitos – chamado de Dilema de Malaca por Hu Jintao em 2003. Terceiro, impulsionar a internacionalização das empresas chinesas e a exportação de serviços (de engenharia, especialmente). Quarto, fortalecer o comércio regional e o papel gravitacional da China, recriando o sistema sinocêntrico. Quinto, estabilizar e securitizar a partir do desenvolvimento e da integração regionais. Sexto, fomentar a conversibilidade ao remimbi (RMB) tornando a moeda chinesa reserva de valor e meio de comércio corrente. Por esta razão, sugerimos que se trata de um projeto chinês de globalização compartimentado em 3 círculos concêntricos.

Nova Rota da Seda e seus desafios securitários

 Ao impulsionar um virtuoso processo de desenvolvimento e integração sob a liderança da China, a Nova Rota da Seda tende a enfrentar desafios múltiplos na Eurásia, com destaque para os securitários. Se considerarmos que se trata de uma gigantesca transição sistêmica, o potencial conflitivo se torna ainda mais agudo.

 Entre os desafios securitários, deve-se destacar, primeiramente, aqueles decorrentes de diversos movimentos separatistas e terroristas que afetam a China, como Xinjiang, e a Rússia, como Chechênia. Ademais, por proximidade, Afeganistão, Paquistão e países da Ásia Central também são regiões irradiadoras de instabilidade em função do enraizamento do crime organizado transnacional de drogas e armas bem como de irradiação de movimentos separatistas e extremistas, como o Talibã e o Movimento Islâmico do Turquistão Oriental (ETIM). O segundo desafio se relaciona aos diversos litígios territoriais como demarcação de fronteiras na Ásia Central e a existência de enclaves disputados – como do Tajiquistão, Vorukh, no Quirguistão, enquanto este último tem um enclave de Barak no Uzbequistão e este tem os enclaves de Sokh e Shakhimardan no Quirguistão. Terceiro, não se pode subestimar a importância dos Estreitos como desafio securitário para a dimensão marítima da BRI, sobretudo os Estreitos de Malaca, cujo controle é dos Estados Unidos, e o Estreito de Ormuz, cercado por uma deterioração da situação de segurança, como a Somália, e a pirataria (HAIQUAN, 2017), crucial para entender a presença da China no Djibuti.

 Todavia, a questão de fundo diz respeito à estratégia de Washington que se configura como uma retomada da política de contenção na Eurásia, sobretudo no entorno do eixo sino-russo. Em alguma medida, os Estados Unidos reeditam a política de contenção da Guerra Fria. Em outras palavras, os desafios securitários são centrais não apenas ao eventual êxito da Nova Rota da Seda, mas também para definir os limites de atuação internacional de China e Rússia, a penetração estadunidense na Eurásia e, sobretudo, tende a ser central nas novas configurações de poder em formação no mundo.

 No caso da Rússia, a política de contenção tem assumido diversas formas articuladas. Primeiro, a lógica de expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, aliança militar do Ocidente originalmente voltada ao combate do comunismo soviético) que mais do que dobrou o número de integrantes apesar do fim da URSS e da bipolaridade. A OTAN tem se fortalecido e ampliado a agenda política de atuação e seu escopo geográfico. Foram integrados os Países da Europa Central e do Leste (PECL), tais como Hungria, Polônia e República Checa (1999); Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia (2004); Albânia e Croácia (2009); e Montenegro (2017).[2] Além de intervenções fora do domínio dos países membros (Balcãs, Afeganistão, Líbia, etc.), as ambições têm sido reiteradas sobre o espaço ex-soviético, como Geórgia e Ucrânia. Aliás, tanto a guerra de 2008 no primeiro país, quanto àquela iniciada em 2014 no segundo, não podem ser compreendidas sem levar em conta a obsessão dos Estados Unidos e seus aliados de ampliar o cerco à Rússia. Segundo, existe uma política de absorção do espaço econômico de influência da antiga URSS. Por um lado, isso tem ocorrido não somente por uma expressiva expansão direta da União Europeia (UE) em direção ao Leste Europeu, cujo número de membros passou de 15 para 28 membros, a grande maioria do antigo bloco socialista. Por outro, a UE cria política de auxílio ao desenvolvimento dos demais países do entorno regional vinculado a um conjunto de condicionalidades para estes países orbitarem os interesses de Bruxelas.

 Terceiro, numa clara evidência da política de contenção à Rússia, Washington tenta anular as capacidades russas através de acordos com Polônia e República Tcheca para a instalação de radares e sistema antimísseis. Obviamente, a resposta de Moscou inclui o desenvolvimento de novas armas capazes de superar qualquer escudo[3] – Sistema pesado de mísseis intercontinentais, míssil de cruzeiro e veículos subaquáticos não tripulados ambos com propulsão nuclear e sistemas de mísseis hipersônicos – e inclusive ameaça de posicionar mísseis em Kaliningrado, na fronteira com a Polônia. Quarto, deve-se levar em conta o intervencionismo militar no seu entorno desde a desintegração da Iugoslávia até a Guerra Global ao Terror, com a invasão do Afeganistão, passando pelas ‘revoluções coloridas’ (Sérvia 2000, Geórgia 2003, Quirquízia 2005 e Ucrânia 2004-14), com a declaração da Guerra Global ao Terror e a construção de base aérea uzbeque de Khanabad e o aeroporto de Manas, na Quirguízia. A isso soma-se a Guerra na Síria e o cerco ao Irã, cujos efeitos securitários sobre a Rússia são evidentes.

 Por fim, na política de embargos ao comércio russo. É assim que se enquadra a lógica de criar atritos e ameaças na fronteira russa e esperar respostas afirmativas como forma de forjar uma espécie de russofobia no Ocidente, isolando o gigante eurasiano a partir de um discurso de Nova Guerra Fria. A vilanização da Rússia tem como objetivo último evitar a formação de um heartland baseado num eixo Berlim-Moscou-Pequim completamente fora do controle de Washington.[4]

 Com a China não tem sido muito diferente. Embora com sinérgica relação econômica com os Estados Unidos, cuja corrente comercial alcançou US$ 505,4 bilhões em 2017, o cerco vem crescendo à medida que a potência asiática fortalece seus poderes econômico e político. As vantagens comerciais chinesa sobre os estadunidenses são notáveis e crescentes, não apenas pelos seus superávits de US$ 375,5 bilhões[5] no comércio bilateral, mas na comparação de exportações de produtos de alta tecnologia em 2016, cujas exportações dos chineses foram de 496 bilhões, ante 153 bilhões de dólares dos estadunidenses.[6]

 Nesse sentido, a ‘guerra comercial’ encampada por Trump em 2018 representa o recrudescimento das intermitentes disputas sino-americanas nesse campo, refletindo a perda de competitividade dos Estados Unidos e os compromissos de seu atual presidente com setores produtivos nacionais. No entanto, cabe ressaltar que a China não é o Japão do Acordo Plaza (1985) – quanto a ilha foi submetida a apreciação de sua moeda e, com efeito, empurrada à desaceleração econômica e subsequentes bolhas nos preços imobiliários e crise bancária. Ao contrário, Pequim dispõe de diversos meios de resistir e retaliar, dada as dimensões de seu mercado doméstico, diversificação do comércio exterior, poder diplomático-militar, reservas internacionais (em dólar), entre outros meios. Nesse sentido, a guerra comercial desencadeada pelos Estados Unidos contra a China em abril de 2018 representa o recrudescimento de disputas cujas origens remontam às tentativas de vetar o ingresso de Pequim na Organização Mundial do Comércio (OMC) ainda nos anos 1990.

 Contudo, as questões territoriais chinesas são mobilizadas pelos Estados Unidos para justificar sua presença na região e ingerir em temas de interesse de Pequim. Os movimentos de Washington de apoio recorrentes a forças políticas independentistas e as vendas de armas a Taiwan; o fomento, a partir de seus aliados, dos litígios no Mar do Sul [7] da China, sobretudo nas ilhas Spratly; a solidariedade ao Japão nas disputas pelas ilhas Senkaku/Diaoyu; e o apoio externo aos movimentos separatistas do Tibet e do Xinjiang. Esse último caso se entrelaça às ações da Casa Branca voltadas a denunciar a China por abusos de diretos humanos em diversos âmbitos político-diplomáticos. A presença estadunidense na Bacia do Pacífico se completa com a forte presença militar em países como Coreia do Sul, Japão, Tailândia, Malásia e Filipinas, além de bases em Guam e Havaí e o anúncio de construção de escudo antimíssil THAAD na Península Coreana – percebida por Pequim como ameaça a sua capacidade militar dissuasória.

 Assim, se entrelaçam intervenções ‘humanitárias’, imposição de ‘democracia de mercado’, isolamento de ‘Estados parias’, expansionismo baseado na guerra ao terror, drogas e/ou corrupção, ataques preventivos, guerras por procuração, sistemas globais de espionagem, etc. (JOHNSON, 2007, p. 31), Como disse Engdhal (2009, p. 127), o império de bases militares é a base do Império e sua política de full spectrum dominance.

 Essas são as bases de uma espécie de arco de contenção do eixo sino-russo liderado pelos Estados Unidos baseado em múltiplas estratégias. Inclui o avanço de alianças militares, como a expansão da OTAN, bem como uma gigantesca estrutura de projeção de força militar que cobre a Eurásia, compostas pelos Comandos do Pacífico (PACOM), Comando Europeu (EUCOM) e o Comando Central (CENTCOM) e um conjunto de aliados estratégicos. Ademais, há, de cerca de 800 bases militares espalhadas pelo mundo, uma rede de bases militares estratégicas na Eurásia, na Coreia do Sul, Japão, Guam, Tailândia, entre outros. Deve-se sublinhar ainda aliados regionais estratégicos, tais como Japão, Arábia Saudita, Azerbaijão, Geórgia, Israel, etc. Os casos de Índia e Paquistão, por exemplo, oscilam entre a aproximação com Washington e com o eixo-sino-russo: por um lado o acordo nuclear indo-americano (2005) e a condição de Major non-NATO Ally (2004), respectivamente, e, por outro, a inclusão como membros da OCX. A isso, somam-se as políticas de regime change através de desestabilizações como as ‘revoluções coloridas’, ocorridas na Sérvia (1999), Geórgia (2003), Ucrânia (2004-14), Quirguistão (2005). Sem esquecer das intervenções militares diretas, cujos efeitos foram devastadores, como Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria – essa salva pelo apoio russo. Há ainda os países sob sanções e recorrentes ameaças militares, os casos de Coreia do Norte e Irã – inclusive com a implosão unilateral do acordo nuclear com o país persa. Outro vetor de ingerência e desestabilização são os apoios aos movimentos separatistas na Chechênia, no Tibet, Xinjiang e de países vizinhos, como Baluchistão. Por fim, mas não menos importante, há litígios com potencial para promover uma escalada militar, como são os casos de Taiwan, Mar do Sul da China, Península Coreana, entre outros. Ou seja, o arco começa na Ucrânia, passa pelo Cáucaso, atravessa o Oriente Médio e a Ásia Central, e culmina no Sudeste e Leste Asiáticos.

 Há um curioso paralelo entre os casos de China e Rússia: a estratégia dos Estados Unidos é expandir suas estruturas de poder, caso da OTAN contra a Rússia e da presença militar no Mar do Sul da China; se chineses e russos não reagirem, ficam acantonados e cercados, e com seu espaço de defesa diminuído; se reagirem, fomentam a percepção de expansionistas nos vizinhos e fraturam os processos de integração regionais. Em outras palavras, as políticas de contenção dos Estados Unidos para lidar com a aproximação (com tensões e contradições) entre China e Rússia são alguns dos elementos mais importantes da nova ordem mundial em gestação.

 Se, por um lado, Washington recrudesce sua presença na Ásia, por outro, não são poucas as iniciativas de China e Rússia para lidar com esses e outros desafios securitários. Primeiramente, o objetivo tem sido a recuperação do poder militar russo (herdado do período soviético) e a modernização da defesa chinesa como política de dissuasão e garantia da soberania e segurança nacionais. Além das iniciativas nacionais, China e Rússia tem liderado processos de integração em sua dimensão securitária. Como destaca Haiquan (2017), a OCX (2001) nasceu com propósitos de segurança regional, notadamente a luta contra os três males (separatismo, terrorismo e fundamentalismo) e soube lidar com disputas regionais fronteiriças e criar confiança militar entre os membros. Na mesma direção, da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO) foi impulsionada pela Rússia para ser a dimensão coletiva da CEI em 1992 (embora somente ratificado em 2002), incluindo Armênia, Bielo-Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão – pois Azerbaijão e Geórgia se retiraram em 1999. E, por fim, a própria ASEAN tem criados vários mecanismos de segurança no Sudeste Asiático, como o Fórum Regional da ASEAN e o Conselho de Cooperação em Segurança no Pacífico Asiático (CSCAP), entre outros (HAIQUAN, 2017).

 No fundo, trata-se de disputas geopolíticas e geoeconômicas no seio das novas configurações de poder, colocando em confronto tipos de Estado e modelos de desenvolvimento distintos. Há um nítido recuo da “grande divergência”, criadora de uma brutal assimetria entre o Ocidente desenvolvido e o resto do mundo entre 1820 e 1950, e um acelerado “emparelhamento” cujos desdobramentos sobre a balança de poder será inevitável – apesar da situação delicada dos países menos desenvolvidos (NAYYAR, 2014). A Rússia e sobretudo a China buscam, não sem contradições e especificidades, o caminho do desenvolvimento. Por um lado, a China atual representa a superação do “século de humilhações” ocorrido após à Guerra do Ópio promovida pelo entrelaçamento do imperialismo britânico, japonês e estadunidense, sobretudo. Um país disposto a resistir às políticas neoliberais promovidas pelo “Consenso de Washington”, ao mesmo tempo que erige o seu Estado de Bem Estar Social – em condições históricas, geográficas e demográficas inéditas. Por outro, segundo Djankov (2015), a Rússia transita de um capitalismo crônico com Yeltsin para um capitalismo de Estado sob Putin, cuja reconstrução nacional e liderança regional são notáveis.

A BRI chega a África

 Na África, mesmo favorecendo o fim dos conflitos convencionais apoiados pelas superpotências (EUA e URSS), o fim da Guerra Fria fez sucumbirem ou mudarem suas orientações políticas os governos progressistas surgidos das lutas de libertação nacionais. Os ajustes neoliberais desarticularam os embrionários Estados africanos, proporcionando regressões econômicas e institucionais. O resultado foi uma certa marginalização do continente das relações internacionais, enquanto prosperavam conflitos identitários, miséria e epidemias (VISENTINI, 2010, p. 155).

 Para a China, a repressão na Praça da Paz Celestial garantiu a manutenção do regime e das reformas iniciadas por Deng, enquanto os demais países socialistas se desintegravam e adentravam numa década de regressão ao adotarem a terapia do choque neoliberal. Ainda assim, o país se viu diante da tentativa de isolamento promovida pelo Ocidente. Nesse sentido, a aproximação com a África foi parte crucial da estratégia chinesa não só para romper o cerco, como para universalizar sua política externa e ampliar a sinergia econômica que vinha alimentando seu dinamismo econômico.

 A partir de meados dos anos 1990, se aprofunda a sinergia entre China e demais países africanos. O comércio da China com o continente africano ultrapassou 174 bilhões de dólares em 2014. A África é destino de cerca de 4,2% dos produtos exportados e origem de 4,8% das importações da China[8]. Em 2009, o comércio da China com a África, que havia partido de módicos 1,3 bilhão em 1992, já havia superado o volume transacionado pelos EUA e o continente. O crescimento do comércio é ilustrativo, entretanto, de uma interação multifacetada que se institucionalizou com a criação do Fórum de Cooperação China-África.

 O FOCAC foi formalmente estabelecido em 2000 entre China e 50 estados africanos. A Conferência Ministerial é realizada a cada três anos, buscando o aprofundamento da cooperação China-África através de vários outros fóruns ligados à agricultura, ciência e tecnologia, direito, finanças, cultura, grupos de reflexão, a juventude, as ONG, as mulheres, a mídia e governança local, etc. Nesse período, diversos documentos têm sido assinados, entre eles o Plano de Ação de Addis Ababa (2004-2006), cujo objetivo foi aumentar a assistência para os países africanos e dar o tratamento de tarifa zero aos produtos exportados para a China a partir de alguns dos países menos desenvolvidos de África. Cada nova cúpula desenvolveu um novo Plano de Ação a ser implementado no período subsequente (Plano de Ação para a Cooperação-Pequim China-África 2007-2009; Plano de Ação el-Sheikh Sharm Sharmel-Sheikh 2010-2012; Plano de Ação de Pequim de Cooperação China-África 2013-2015). Ademias, o governo chinês tem estendido linhas de crédito bilionárias para diversos setores da economia africana[9]. Em outras palavras, o FOCAC fortalece a relação bilateral da China com os países africanos, garantindo recursos naturais, novos mercados e para oportunidades de investimentos, enquanto granjeia comprometimento dos países africanos junto à China nas Organizações Internacionais (LOPES; NASCIMENTO, VADELL, 2013).

 Esta institucionalização das relações da China com a África impulsiona diversas outras iniciativas. Primeiro, ampliou a ajuda internacional da China para a África, com capacitação de profissionais, cooperação técnica, ajuda humanitária, etc. Segundo, o desenvolvimento infraestrutural do continente tem progredido substancialmente, com a construção de prédios públicos, usinas de produção de energia, estradas, escolas e centros de desenvolvimento agrícola, hospitais, entre outros. Terceiro, os investimentos externos diretos da China têm impulsionado Zonas Econômicas Especiais e Zonas de Livre Comércio em diversos países africanos, compensando a perda de empregos decorrente das exportações chinesas. Como destaca Visentini (2014) estas são, marcadamente, características da Cooperação Sul-Sul e estão contribuindo para criar um espaço geopolítico meridional baseado no espírito da Conferência de Bandung. Ou seja, é nesta Conferência, no Movimento dos Não-Alinhados e no G-77 que se lançam as bases das relações sul-sul e de sua organização em torno de princípios, valores e ideias comuns (PEREIRA; MEDEIROS, 2015).

 É, evidente, portanto, que a política chinesa para a África é baseada no seu auto interesse e em suas considerações políticas e estratégicas. Isso difere bastante do discurso ocidental voltado a caracterizar como ‘imperialismo chinês’. São inegáveis que os ganhos e as capacidades são assimétricos; mas inegável também que a relação da China com os países africanos não reedita o domínio territorial, o intervencionismo militar, a ingerência sobre a gestão econômica, o etnocentrismo acerca das organizações políticas, a imposição de padrões culturais, etc. que caracterizaram o imperialismo do século XIX e XX.

 A China está entrelaçando, de forma persuasiva, retórica e capacidades para levar adiante a BRI. Segundo Yiwei (2016, p. 15-6), a Nova Rota da Seda Marítima rejeita o caminho anteriormente adotado pelas potências ocidentais, baseado na expansão, conflito e colonização, em favor de um novo tipo de civilização marítima caracterizada pela integração dos homens e dos mares, com coexistência harmoniosa e desenvolvimento sustentável.

 Para tanto, o objetivo da China é estabelecer ligações entre os principais mercados do Oriente Médio, Ásia Central e África. A Nova Rota da Seda Marítima visa a consolidar uma infraestrutura portuária para fortalecer corredores comerciais e energéticos do Mar do Sul da China, do Golfo Pérsico ao Mar Vermelho, englobando as penínsulas da Indochina, do Indostão, da Arábia e do Chifre da África. É uma forma de aumentar a presença chinesa diante dos checkpoints existentes na região, como são os casos do estreito Bab el-Mandeb entre o Mar Vermelho e o Índico, do estreito de Ormuz entre Golfo Pérsico e o Índico e o estreito de Málaca entre o Índico com o Mar do Sul da China.

 No caso do continente africano, as regiões do Nordeste e Chifre da África são o outro extremo da ligação da via marítima da BRI. A posição de países como Egito, Djibuti e Quênia revela que o Chifre da África é o outro extremo da Nova Rota da Seda Marítima. Está região, por sua vez, permite potencializar a política africana da China (Figura 2). Diga-se, aliás, que muito da experiência chinesa por detrás da Nova Rota da Seda, baseada na construção de infraestrutura como forma de impulsionar novos fluxos e novas parcerias, ganhou seus contornos mais robustos através das relações sino-africanas.

 Sendo assim, o Egito é particularmente crucial na Nova Rota da Seda Marítima, na medida em que o Canal de Suez representa o principal ponto de trânsito entre o Oceano Índico e o Mar Mediterrâneo. Quando de sua visita ao país africano em janeiro de 2016, Xi Jinping incentivou expressamente as empresas chinesas a participarem em grandes projetos no país, incluindo o desenvolvimento do Novo Canal de Suez e a construção de uma nova capital administrativa fora do Cairo[10].

 Não muito diferente é o caso do Djibouti, estrategicamente localizado no cruzamento do Mar Vermelho e do Golfo de Áden. Apesar de pequeno, o país africano também tem importância para a Nova Rota da Seda Marítima, inclusive para abrigar a primeira base naval ultramarina da China – onde os EUA já têm Comando Africano do Pentágono (AFRICOM) utilizado para operações com drones da CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA). O objetivo alegado pelo governo chinês é de tratar-se de instalações de apoio logístico para os esforços de combate à pirataria, de assistência humanitária e de manutenção da paz. Embora a China resista a aceitar a designação de ‘base militar’, é nítido o esforço do país asiático para construir uma Marinha capaz de operar em águas oceânicas com alcance global – com apoio de seu primeiro porta-aviões, batizado de “Liaoning”[11].

 Da mesma forma, no Quênia, o governo da China firmou acordo para a construção do Porto de Lamu. O objetivo é integrar com o Sudão do Sul e com a Etiópia através de outras obras de infraestruturas, incluindo rodovias, ferrovias, aeroportos, refinarias de petróleo e cabos de fibra ótica. Assim, a emergente indústria de petróleo e gás do Leste da África deve estar integrada ao dinâmico mercado da Ásia[12]. Essa região está, por sua vez, intimamente ligada também aos interesses chineses no Sudão.

 Com efeito, pode-se concluir que a BRI amarra um conjunto grande de objetivos do governo chinês – já desenvolvidos em outros estudos (PAUTASSO, 2012; XXX). Primeiro, permite, em âmbito doméstico, aprofundar a integração territorial nacional com a formação de uma economia continental, dado que o leste do país desenvolve o “braço” marítimo da Rota, o oeste desenvolve o “braço” continental, conectando mais de 10 províncias chinesas. Segundo, aprofunda a integração regional e fortalece as condições para a recriação do sistema sinocêntrico. Terceiro, a universalização da política externa chinesa, com a forte presença na África, torna-se um campo de prova das disputas sino-americanas, reveladoras dos modelos de desenvolvimento em disputa na atualidade.

 Em suma, a Nova Roda da Seda é nitidamente uma estratégia chinesa para i) integrar a Eurásia, ii) consolidar um novo sistema sinocêntrico e iii) criar as condições para a China se firmar como potência mundial. É a um só tempo uma estratégia e um discurso para legitimar sua ascensão em parâmetro distintos daqueles enunciados pelos EUA no pós-Guerra Fria.

Considerações finais

 Com as dificuldades de editar este conjunto de pesquisas, fica aqui mais uma provocação e um convite para ler os materiais na íntegra. O esforço de compreender a ascensão da China, da BRI e das mudanças em curso no sistema internacional prosseguem. O Brasil, aliás, não parece estar atendo às transformações e tampouco sintonizado com o rumo dessa encruzilhada histórica.

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Referências

PAUTASSO, Diego. A Nova Rota da Seda e seus desafios securitários: os Estados Unidos e a contenção do eixo Sino-Russo. ESTUDOS INTERNACIONAIS. v.7, p.85 – 100, 2019.

_________; UNGARETTI, C. . A Nova Rota da Seda e a recriação do sistema sinocêntrico. ESTUDOS INTERNACIONAIS, v. 4, p. 25-44, 2017.

_________. O papel da África na Nova Rota da Seda Marítima. Brazilian Journal of African Studies, v.1, p.124 – 136, 2016.

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[1] Ver documento original disponível no site oficial do governo da China: http://en.ndrc.gov.cn/newsrelease/201503/t20150330_669367.html

[2] Ver informações do site oficial da OTAN, disponível em: https://www.nato.int/cps/ie/natohq/topics_52044.htm.

[3] Ver detalhes na reportagem da BBC, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-43258300.

[4] Tais ideias aparecem detalhadas em outro artigo, ver Pautasso (2014).

[5] Ver dados oficiais no United StatesCensus Bureau, disponível em: https://www.census.gov/foreign-trade/balance/c5700.html#2016.

[6] Dados do Banco Mundial.

[7] Para mais detalhes, ver Pautasso; Doria (2017).

[8] Ver estatística do comércio chinês do ObservatoyofEconomicComplexity disponível em: http://atlas.media.mit.edu/en/profile/country/chn/#Destinations.

[9] Ver detalhes no site oficial do FOCAC disponível em: http://www.focac.org/eng/ltda/ltjj/t933522.htm.

[10] Ver artigo de Shannon Tiezzi no The Diplomat “Xi’sVisitCementsEgypt’sPlaceonthe ‘Beltand Road’ disponível em: http://thediplomat.com/2016/01/xis-visit-cements-egypts-place-on-the-belt-and-road/.

[11] Ver notícia da Sputnik Brasil“China construirá sua 1ª base naval ultramarina perto de base dos EUA no Djibouti” disponível em: http://br.sputniknews.com/mundo/20151127/2900669/china-base-baval-ultramarina-eua-djibouti.html.

[12] Ver notícia do Estadão “Grupo chinês firma acordo para construir porto do Quênia” disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,grupo-chines-firma-acordo-para-construir-porto-do-quenia,1537830.

 

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[Artigo tirado do sitio web brasileiro Vermelho, do 3 de outubro de 2019]