A uberização sem volta da economia

Gustavo Barbosa - 04 Feb 2020

Sob a hegemonia do capital financeiro, a tendência, tanto no centro como na periferia do capitalismo, é de supressão de soberanias nacionais e de destruição das redes de proteção social construídas no decorrer do século XX

 Dados recentes do IBGE apontam para uma leve diminuição nos índices de desemprego, fechando em 11,2% no trimestre encerrado em novembro, o que totaliza 11,9 milhões de pessoas. Há um ponto, porém, que chama a atenção: o aumento da informalidade, com alta de 1,2% ou de 24,6 milhões, recorde na série histórica do IBGE. Hoje, 41,4% dos trabalhadores brasileiros têm vínculos de trabalho precários. São quase 40 milhões cujos dias são de par em par, diria Cazuza.

 A precarização das condições de trabalho vem tomando a forma do que se convencionou a chamar de uberização, em referência à multinacional responsável pelo famoso aplicativo de transportes privados que ganha cada vez mais espaço se alimentando do desespero e da falta de opções das pessoas em conseguir meios de se sustentar.

 Na medida em que a Uber vêm se tornando onipresente nos grandes centros urbanos, há sempre aqueles que, caolhos e míopes, prestam suas homenagens ao que julgam ser uma carta que o livre-mercado tira da manga para socorrer os desgraçados que vagam em busca de quem assine suas carteiras.

 Em seu site, a empresa se define não dizendo o que é, mas o que supostamente faz. Na aba “Quem somos”, nos deparamos com a afirmação de que “as oportunidades surgem, as portas se abrem e os sonhos se tornam realidade”. Há também uma carta de seu CEO que serve apenas para abastecer o reino ideológico do capitalismo com ainda mais unicórnios: os motoristas, segundo ela, são “parceiros” e “representantes” de uma das maiores plataformas mundiais de “trabalho independente” feita para conectar pessoas.

 A Uber é o maior símbolo da chamada Economia de Compartilhamento. Tom Slee, economista estudioso do tema, tratou do assunto no livro Uberização: a nova onda do trabalho precarizado (What’s Your’s Is Mine: Against the Sharing Economy, do original), publicado no Brasil pela editora Elefante.

 Slee desnuda os mecanismos ideológicos por trás da invólucro moderno e descolado de startups como a Uber, a AirBnB e aplicativos de entrega de alimentos (ainda não tão populares na época em que o livro foi lançado, mas que também se inserem no esquema da Economia de Compartilhamento), mostrando a assombrosa capacidade do capitalismo em aprimorar suas formas de exploração.

 O discurso padrão é o de que a Economia de Compartilhamento promete prioritariamente ajudar indivíduos vulneráveis a tomar o controle de suas vidas, tornando-os microempresários. A lógica do “empresário de si mesmo” não é nova, e costuma ser a argamassa ideológica da privatização e do desmonte de serviços públicos essenciais. Vejamos o exemplo da educação: um direito básico que, esvaziado de recursos, passa a ser um investimento no qual a escolha da escola dos filhos se baseia na régua contábil do custo-benefício. O mesmo ocorre com os planos de saúde, que baseiam a prestação de seus serviços na rentabilidade. Como a saúde passa a ser uma mercadoria, não há dúvidas para as corporações de qual caminho tomar quando o lucro bate de frente com a necessidade de salvar vidas.

 Além disso tudo, a Economia de Compartilhamento dá uma nova roupagem ao conceito tradicional de empreendedorismo, tirando do baú o principal coringa do liberalismo vulgar: a meritocracia. Slee chega à conclusão de que o está ocorrendo é a propagação de um livre mercado inóspito e desregulado em áreas antes protegidas (as reformas trabalhista e da Previdência são os exemplos mais recentes dessa desregulamentação). Nesse sentido, a remoção de proteções e garantias conquistadas após décadas de luta social surge paralelamente à criação de novas formas de subemprego mais arriscadas e precárias para a classe trabalhadora, o que, no caso do Brasil, não seria possível sem a demolição do grande pacto civilizatório que é a hoje moribunda Constituição de 1988.

 Embora os entusiastas da Uber e aplicativos afins atribuam seu sucesso à tecnologia “disruptiva” e à eficiência em conectar passageiros e motoristas, o que acontece na verdade é uma manobra exitosa em evitar custos com seguro, impostos e inspeções veiculares, transferindo-os ao usuário do veículo (que nem sempre é seu proprietário). Dean Baker, pesquisador do Center for Economic and Policy Research, resumiu bem o espírito da Economia de Compartilhamento: uma forma de enriquecer por meio de maneiras de ficar à margem das leis e então reivindicar que se trata de uma grande inovação.

 Marx já havia apontado a incrível capacidade de adaptação do capitalismo. Rupturas políticas que marcam viradas históricas costumam vir exatamente a reboque dessa capacidade. Em sua forma nascente, o modo de produção capitalista originou as constituições nas comunas medievais, passando à monarquia absolutista quando se desenvolveu como sistema de produção manufatureira. Na economia industrial desenvolvida, pulou da república democrática à monarquia constitucional, sempre adaptando-se aos níveis de exploração da época via a adoção de formas políticas correspondentes.

 Sob a hegemonia do capital financeiro, a tendência, tanto no centro como na periferia do capitalismo, é de supressão de soberanias nacionais e de destruição das redes de proteção social construídas no decorrer do século XX. As constituições e demais mediações das democracias liberais, primeiros instrumentos de controle e organização do capital, tornaram-se uma barreira para a acumulação, assim como aconteceu com o Estado Absolutista, fundamental ao desenvolvimento do capitalismo mas que, com o despontar do poder econômico da burguesia, virou um entrave que viria a ser derrubado pela Revolução Francesa.

 A experiência histórica nos mostra que reformas como a trabalhista e da Previdência representam o redesenho das formas políticas de acordo com o arrojamento dos graus de exploração do período em que vivemos. No caso dos aplicativos de transporte e de entrega de alimentos, todos os custos e riscos da atividade produtiva são transferidos para o explorado, que chega a dirigir 16 horas por dia enquanto ciclistas costumam trabalhar por períodos superiores a 24 horas, muitas vezes com bicicletas alugadas. Não há garantias caso sofram acidentes, mais suscetíveis em jornadas que superam mesmo as dos anos mais selvagens da 1ª Revolução Industrial.

 Em 1878, Friedrich Engels dedicou-se a contrapor as ideias de Eugen Duhring, filósofo e economista alemão que se via na vanguarda teórica da social-democracia alemã. Em uma das passagens da obra conhecida como Anti-Dühring, lançada no Brasil pela Boitempo Editorial, Engels explica como a política é condicionada pela economia, e não o contrário. Se, na derrocada do feudalismo e dos regimes absolutistas, a burguesia se viu espremida pelas respectivas formas políticas, vindo a derrubá-las, hoje se encontra no gargalo de uma institucionalidade que ainda remonta ao Fordismo e à subjugação por meio da forma assalariada.

 A Revolução Francesa ocorreu num contexto em que a situação econômica extrapolou os limites da gaiola política que privilegiava a concentração de poder na nobreza e no clero, indolentes com uma burguesia que já há algum tempo demonstrava insatisfação com a existência de instituições descompassadas com o seu domínio na economia. Não houve volta depois que foi criada a máquina a vapor e deu-se início à Revolução Industrial, tirando lascas do feudalismo até seu derradeiro fim em 1793, durante o Terror Jacobino. Da mesma maneira, são improváveis as possibilidades de retorno aos áureos tempos do Fordismo, das soberanias nacionais e do Estado de bem-estar social, sociabilidades anteriores às da uberização, cuja tendência é de franco crescimento.

 É por essa razão que as alternativas de organização social não podem, jamais, passar pela utopia idílica de humanização do capital, principalmente por estarmos numa quadra histórica em que inexiste uma ameaça socialista que constranja as democracias liberais a entregarem os anéis (institucionalização de direitos trabalhistas e da seguridade social via welfare state) para salvar os dedos (manutenção dos mecanismos de reprodução do capitalismo). Um nova configuração desta ameaça pode, portanto, ser o caminho, com a sorte de não termos que começar do zero e repetir os erros do passado.

 Há também a barbárie, o genuíno caminho da anarquia capitalista. O fato de estarmos indo em sua direção foi muito bem identificado pelo último estudo da Oxfam, segundo o qual dois mil bilionários possuem mais riqueza que os 4,6 bilhões mais pobres do planeta, 60% de sua população. Mesmo o miolo ideológico do capitalismo financeiro, representado por entidades como o FMI e o Banco Mundial, vem demonstrando não levar a sério o fenômeno da globalização, indicando, por sucessivos relatórios, a disfuncionalidade do neoliberalismo – termo utilizado pelo próprio FMI – e os índices preocupantes que atingiu a desigualdade social no mundo

 Se nem eles levam a sério, não sei por que nós, meros mortais, deveríamos levar também.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro Outras Palavras, do 3 de febreiro de 2020]