Acerca do capitalismo monopolista transnacional

Vaz de Carvalho - 15 Xan 2016

O capitalismo monopolista transnacional (CMT) procura criar a ilusão de uma economia mais produtiva, permitindo mais empregos, maiores níveis de desenvolvimento e correção das ineficiências de cada país. Na realidade, resultou num descontrolado aumento das desigualdades e em intermináveis crises

1 – Do CME ao CMT

 No início dos anos 70 o capitalismo monopolista de Estado (CME) evidenciava os limites do capitalismo perante o agudizar das suas contradições. Para as superar, bem como à crise que se instalava, restavam duas vias: a progressista de transição para o socialismo, a reacionária neoliberal e imperialista.

 Em "A catástrofe iminente e os meios de a conjurar", Lenine escrevera: "O capitalismo monopolista de Estado é a mais completa preparação para o socialismo, a antecâmara do socialismo, o degrau histórico que nenhum outro degrau intermédio separa daquele a que se chama socialismo".

 Os partidos socialistas/social-democratas renegando os seus próprios programas em que preconizavam atingir o socialismo pele via reformista, seguiram a sua verdadeira agenda: defender o sistema capitalista e a aliança com o imperialismo, acabando assim por assegurar o domínio do neoliberalismo.

 O grande capital encontrara no ultraliberalismo da "escola de Chicago" a justificação teórica para a sua ofensiva contra o CME keynesiano, forçando a instauração de um capitalismo monopolista transnacional (CMT).

 Em dezembro de 1970 a Business Week postulava: "Sem um governo mundial não pode haver verdadeira economia mundial", salientando que "doravante o Estado encontra-se apoiado de modo periclitante entre o seu quadro nacional e o internacional". [1]

 A social-democracia aceitou como boas as teses neoliberais (não podemos ignorar os interesses pessoais e materiais envolvidos nestas opções), convencendo-se, ou apenas tentando convencer os demais, que manteria a mesma relação de forças capital-trabalho, que os trabalhadores partilhariam dos aumentos de produtividade e da exploração dos outros povos.

 No fundo, aceitavam a tese do "gotejamento", pela qual o grande capital iria enriquecer ainda mais. Tudo isto, disfarçado com o culto do "mercado", apresentando-o de forma mecanicista em que as ações humanas perdem conteúdo social e se resumem à hipotética racionalidade e predeterminação do homo economicus.

 Uma intensa propaganda pretende que o Estado seja gerido como o comum das famílias, portanto retirando-lhe as funções próprias à sua soberania. O Estado submeter-se-ia totalmente à voracidade do capital transnacional, perdendo inclusive o papel que a social-democracia lhe reservava como protagonista na conciliação de classes a favor do capital. A conciliação passou a submissão e o protagonismo pertence ao grande capital financeiro.

 As privatizações fazem parte do processo de desmantelamento do CME, sendo desde logo ou posteriormente absorvidas pelos grandes grupos transnacionais. As regras da UE e a sua "união bancária" visam em absoluto este objetivo.

 A UE é exemplo da ilusão de criar um sistema capitalista, neste caso transnacional, esvaziado de contradições, perfeitamente racional e solidário. Assim, enquanto os preâmbulos dos tratados e principais diretivas apontam para mais emprego, aumento de riqueza dos cidadãos, solidariedade, crescimento intensivo, a sua prática apenas defende "ûber alles" os interesses dos grandes grupos transnacionais.

 O CMT representa o predomínio da oligarquia sobre a democracia: livre circulação de capitais, hipertrofia das atividades improdutivas, repressão dos ideais e movimentos progressistas, expansão e propaganda de ideologias reacionárias. Tudo o que é social e coletivo fica entregue aos exclusivos interesses do lucro capitalista. E chamam a isto eficiência…

2 – Países dominantes e países dominados

 O CMT estabelece e torna permanentes relações de dependência entre as nações, relações que não são apenas económicas, mas também políticas (os tratados), ideológicas (direitos e deveres dos cidadãos e dos povos) e culturais como modelos de comportamento. A libertação das cadeias de dependência implica a superação do CMT.

 Objetivamente o CMT visa estabelecer uma repartição internacional da mais-valia a favor do grande capital transnacional, assumindo-se a superpotência imperialista como garante da exploração do proletariado a nível mundial.

 O mais favorável desempenho dos países dominantes é apresentado como resultante do seu modelo, tendo em vista a manutenção das relações de dependência e a sua aceitação pelos países dominados.

 Na UE os mecanismos de dependência conduziram os países menos desenvolvidos para a via do subdesenvolvimento, os casos da Grécia e Portugal são evidentes, mas logo na sua esteira estão a Espanha, a Itália, apenas menos pressionados devido à sua dimensão que provocaria o rápido desmoronamento desta construção imperialista. Quanto aos países da Europa do leste foram (des)estruturados ao nível do chamado "terceiro mundo".

 A financeirização constitui uma estrutura fundamental de suporte do CMT sendo a forma do grande capital tentar escapar à baixa tendencial da taxa de lucro. A função da banca seria transformar dinheiro (capital fictício) em capital produtivo criando valor. Transformou-se no seu contrário: acumula valor através da usura e transforma-o em capital fictício através da especulação.

 A lei do valor (transformação do valor em preço de mercado) passa a realizar-se ao nível global, controlada pelas transnacionais com nítidos prejuízos para os trabalhadores de todos os países envolvidos e com o poder do Estado capturado nesta lógica.

 A extorsão do excedente económico dos países dominados faz-se pelos juros, pela troca desigual, pela livre transferência de capitais, pela (criminosa) concorrência fiscal e seus "paraísos", mas também pela emigração altamente qualificada.

 À perda de soberania e da autonomia democrática dos Estados corresponde o acréscimo de relações de dependência económica, monetária, tecnológica, modelos de consumo. Os ataques aos direitos e salários como forma de criar "confiança" ao investimento estrangeiro contribuem para estabelecer uma rede de exploração a nível global sob o controlo das transnacionais.

3 - CMT e "comércio livre"

 "A liberdade de comércio é a liberdade do capital", escrevia Marx em "Miséria da filosofia". O CMT elimina limitações nacionais à penetração do capital transnacional justificando-se com uma aparente neutralidade e eficiência dos mercados, pelos quais se obteria a otimização dos recursos produtivos a nível mundial.

 Contudo esta aparência esconde as relações de produção que suportam os mercados e a forma como atuam nos espaços onde se inserem. Praticamente todos os mercados estão programados pelas grandes transnacionais, numa ótica monopolista, sob a proteção do imperialismo. O preço é então uma grandeza determinada por esses interesses, frequentemente com o apoio (vergonhoso) de entidades ditas reguladoras

 Quanto à função reguladora que o mercado poderia desempenhar desaparece sob a ação dos monopólios e o domínio da finança. Tal função só seria possível entre unidades de dimensão e com fatores de produção equivalentes.

 A mera constatação da realidade mostra que o comércio externo baseado na teoria das "vantagem comparativas" (algo completamente fora do contexto!) conduz ao aumento das desigualdades e desequilíbrios estruturais dos países menos competitivos, impedindo a reestruturação das suas economias, estabelecendo relações de dependência e subdesenvolvimento. Tal é evidente no nosso país com as acríticas e alienantes opções europeias.

 A "concorrência livre e não falseada" da UE não passa de um sofisma para estabelecer mecanismos de troca desigual. A competição pelo preço mascara a desigualdade dos valores trabalho trocados pela igualdade das taxas de lucro, em vez de: a trabalho igual salário igual, mesmo capital mesmo lucro. [2]

 A partir do momento em que a OMC escapava de alguma forma às intenções do imperialismo e se tornava um instrumento insuficiente para impor o CMT [3] passou-se à fase a dos tratados transcontinentais como o TPP (acordo de parceria transpacífica), o TTIP, a ser negociado em segredo entre os EUA e a UE (mas em conluio com as grandes transnacionais) e o TISA (tratado de serviços e investimento, em negociação). [4]

 Estes tratados são uma arma contra os povos e a formalização institucional do CMT, colocando as transnacionais acima da democracia e do próprio poder dos Estados, nada mais reconhecendo senão esses interesses, movidos por uma insana ambição de maximizar os lucros, lei que sobrepõem a qualquer outra.

 De facto, com estes tratados as transnacionais podem submeter totalmente as nações aos seus interesses e penaliza-las caso considerarem que de alguma forma as suas perspetivas de lucro foram prejudicadas.

 São tratados que vão muito para além do "comércio livre": visam assegurar o domínio absoluto do CMT tornando a democracia, as aspirações e a vontade dos povos uma ficção. Trata-se de nivelar por baixo a nível mundial legislação laboral, políticas de taxação de rendimentos e lucros, mas também requisitos de qualidade e sanidade, regulamentações ambientais, etc.

 Alguns empresários, políticos e os omnipresentes "comentadores" declaram o seu apoio a este "comércio livre" que possibilitaria a expansão dos mercados. A pergunta que se deve fazer é: a troco de quê para o país e para o seu povo? Ou tal não lhes diz respeito?

4 – "Construtores de uma civilização mundial"

 Os ideólogos do CMT defendem os seus políticos como "construtores de uma civilização mundial". A insanidade desta obsessão evidencia-se pela mera circunstância de que para a formação dos EUA como Estado federal foi necessária uma sangrenta e prolongada guerra, cujas sequelas se mantiveram durante décadas.

 O CMT procura criar a ilusão de uma economia mais produtiva, permitindo mais empregos, maiores níveis de desenvolvimento e correção das ineficiências de cada país. Na realidade, resultou num descontrolado aumento das desigualdades e em intermináveis crises.

 A ação combinada do capital financeiro e das megaempresas transnacionais levaram as contradições do sistema capitalista para um nível ainda mais gravoso e antagónico. O CMT está a ser imposto através da chantagem do "não há alternativa", da conspiração e da ingerência, guerras de agressão, desmembramento de Estados, caos social, desastres humanos, apoio (camuflado) ao terrorismo.

 A UE ultraliberal integra-se neste modelo de capitalismo, sem soluções para os problemas que origina, no fundamental escamoteados pelos "analistas" e comentadores de serviço que não ultrapassam o estado de miopia ideológica ou da mera estratégia de desinformação. Uma evidência é a estagnação económica, desemprego massivo, aumento da pobreza, apesar dos 60 mil milhões que o BCE programou despejar mensalmente sobre o sistema financeiro e que não consegue transformar-se em capital produtivo.

 As contradições entre as necessidades de desenvolvimento nacional e os interesses das transnacionais são evidentes: o capital transnacional apenas ocorre para os locais onde a taxa de lucro é maior, independentemente de considerações éticas e humanistas. Para serem defendidos os lucros do grande capital as funções sociais do Estado são destruídas.

 A imposição de um modelo que se pretende global e uniforme para todos os povos, regido exclusivamente pelas leis do lucro monopolista, não apenas bloqueia a democracia e o desenvolvimento como destrói a cultura e a identidade de cada povo: em suma a capacidade para decidir o seu destino coletivo.

 Sem a transformação das relações de produção as soluções reformistas apenas conduzem a uma situação instável que a oligarquia reverterá a seu favor. Mas a transformação das relações de produção só é possível realizar por um movimento revolucionário, popular de massas, na base de uma estratégia antimonopolista, indo ao encontro dos mais profundos interesses nacionais. Relembremos que neste sentido o 25 de ABRIL foi de facto um movimento revolucionário ao definir uma "estratégia antimonopolista". Logo revertida quando se estabeleceram políticas de direita.

 As necessidades de desenvolvimento económico e social dos povos têm de sobrepor-se às iníquas condições impostas aos Estados para lhe serem proporcionados capitais e à "racionalidade" dos preços internacionais, que as transnacionais controlam em seu benefício.

 O desenvolvimento terá de ser, como é mais que evidente numa entidade coletiva, baseado em custos e benefícios sociais e numa estratégia de longo prazo.

 O CMT representa um gravíssimo retrocesso civilizacional em todos os campos da atividade humana e mostra que o capitalismo atingiu o seu limite como fator de desenvolvimento, mergulhando a humanidade em quatro crises insuperáveis nesse sistema: a crise económica e financeira, a crise social, a crise ambiental e a crise belicista. A alternativa a este sistema é a transformação das relações de produção e a opção libertadora pela paz e pelo socialismo.

_______________________________________________________________________

[1] Business Week de 19/12/1970, Special Report, citado em "A economia mundial capitalista Vol. II", Christian Palloix, Ed. Estampa, 1972, p. 188

[2] Idem, p. 68

[3] Acerca das recentes posições da OMC ver: A nova estratégia de negociação comercial do imperialismo , Prabhat Patnaik,

[4] Ver: O tratado de comércio livre EUA-UE: a grande golpada , Daniel Vaz de Carvalho, e O Acordo TPP: o tratado de comércio livre mais agressivo da História , Florentino Lopez Martinez

_______________________________________________________________________

 

[Artigo tirado do sitio web portugués ‘Resistir.info’, do 11 de xaneiro de 2015]