Ascensão e queda da UE: uma avaliação negativa dos 20 anos do euro

Jorge Bateira - 03 Out 2019

A questão mais preocupante é a do preço deste projecto de integração económica e monetária: o sacrifício em vidas frustradas pelo desemprego, degradação das condições de vida com a erosão do Estado-social, desmantelamento do Direito do Trabalho, desigualdade de rendimento e riqueza, em suma, a dramática regressão no processo de desenvolvimento que foi alcançado no pós-Guerra

Introdução

 Num texto sobre a luta dos ‘coletes amarelos’ em França, no qual defende a necessidade de uma grande mudança política para que a União Europeia possa sair da crise, o eurodeputado e ex-Primeiro-Ministro belga Guy Verhofstadt (2018) afirma: “Precisamos de tornar a UE muito mais democrática, transparente, e eficaz – o que quer dizer, mais soberana – do que é hoje.” E, logo em seguida, recorda que esse era o projecto dos pais-fundadores Jean Monnet, Paul-Henry Spaak, Robert Schuman, Alcide de Gasperi e outros. Esta referência aos pais-fundadores obriga-me a recordar que o europeísmo de Schuman e Monnet, dois intelectuais do regime de Vichy, era partilhado por François Perroux, um proeminente economista francês que, em plena guerra, já tinha planos para uma integração europeia com moeda única e um banco central que não deveria financiar os Estados (Parguez, 2016). Ao mesmo tempo, Altiero Spinelli e Ernesto Rossi, resistentes deportados para a ilha de Ventotene – onde fundaram o Movimento Federalista Europeu – partilhavam do pensamento económico de Luigi Einaudi, figura cimeira do neoliberalismo italiano e amigo de Hayek. Sobre a moeda única, Einaudi escreveu o seguinte: “A vantagem do sistema não residiria apenas na contabilidade e na comodidade dos pagamentos e transacções entre Estados. Apesar de enorme, esta vantagem seria pequena em comparação com outra, muito superior, a da abolição da soberania monetária de cada Nação.” (Einaudi, 1945).

 Por conseguinte, o “projecto europeu” dos pais-fundadores era, desde o início, a construção de um Estado federal em que as decisões de política económica seriam inspiradas pela doutrina neoliberal. Fiel às origens do projecto, Verhofstadt defende um rápido avanço federalista como solução para os actuais problemas da UE. Na sua opinião, a superação da presente crise exige mais uma fuga em frente neste caminho traçado pelos pais-fundadores. Na realidade, o federalismo europeu constitui a manifestação de um voluntarismo político arrogante que julga poder fazer tábua-rasa da História ao pretender reduzir um mosaico de Estados soberanos com identidades socioeconómica, institucional e cultural bem marcadas, à condição de entidades políticas desprovidas de poder orçamental e monetário e obrigadas à solidariedade fiscal. Na verdade, este projecto “de uma união cada vez mais estreita” (Artigo 1o do Tratado da União Europeia), ainda que camuflado por muita retórica vazia, é filho do pior que a modernidade nos legou, porque constitui um megalómano projecto de engenharia política, manifestação da hubris das elites europeias determinadas em reconfigurar a Europa, custe o que custar (Mitchell, 2015)(1).

  1. A ‘fuga em frente’ como método

 O projecto de uma união política na Europa recebeu um rude golpe quando a França recusou a Comunidade Europeia de Defesa (1954). A partir daí, o processo avançou segundo o método prescrito por Jean Monnet: “integrar políticas específicas, em algumas áreas, na expectativa de que, mais adiante, fosse possível avançar na integração de outras áreas, numa espécie de reacção em cadeia” criadora de mais integração que seria sustentada pelo receio de suportar os custos de um recuo (Spolaore, 2013, p. 9). No entanto, a ideia de que a integração económica não poderia dispensar a integração política foi defendida nos relatórios Werner (1970) e MacDougall (1979), encomendados pela Comissão Europeia, que insistiam na necessidade de uma política orçamental supranacional que sustentaria a união monetária, já em discussão nessa altura.

 Com o avanço para o Acto Único (1987), ficaram abertas as portas à livre circulação de capitais o que, no regime de câmbios fixos do Sistema Monetário Europeu (SME), acabaria por inviabilizar a política monetária dos Estados-membros e produzir crises cambiais. Os economistas sabiam que isto iria acontecer, mas, como bem explicou Carlo Padoa-Shioppa, um dos principais arquitectos da moeda única e membro do Comité Delors, era necessário pôr em marcha o ‘método Monnet’: O caminho para a moeda única é semelhante a uma reacção em cadeia na qual cada passo resolve uma contradição pré-existente e gera uma nova que, por sua vez, requere um novo passo em frente. Os passos foram o arranque do SME (1979), o relançamento do mercado único (1985), a decisão de acelerar a liberalização dos movimentos de capitais (1986), o lançamento do projecto de uma união monetária (1988), o acordo de Maastricht (1992), e por fim a adopção do euro (1998). (Spolaore, 2013, p. 11).

 Sem integração política, e a respectiva vertente orçamental, os promotores da união económica e monetária (UEM) estavam conscientes de que a moeda única seria uma construção frágil, condenada a uma crise que, bem aproveitada, conduziria à integração política. No entanto, também estariam conscientes da dificuldade em dar um salto qualitativo dessa natureza. Por isso, é natural que hoje nos interroguemos sobre qual seria a visão de longo prazo dos promotores da moeda única: “uma moeda sem Estado, por agora, ou uma moeda sem Estado, para sempre?” (Spolaore, 2013, p. 13).

  1. Um sucesso condenado à crise

 Desde que se começou a discutir seriamente a criação de uma moeda única, entendida como um avanço na integração europeia exigido pelo Mercado Comum, vários economistas chamaram a atenção para as graves implicações desse projecto: os países com estruturas produtivas menos sofisticadas e com uma inflação estrutural mais elevada, quando privados do mecanismo de ajustamento externo, através da taxa de câmbio, veriam definhar alguns sectores produtivos e os territórios onde se concentram, acumulando elevado desemprego de longa duração. Um deles, Nicholas Kaldor (1971), foi particularmente insistente no argumento de que, sem transferências financeiras, no quadro de uma integração política com fiscalidade supranacional, o mal-estar social e o conflito político nos países da periferia tornariam a integração insustentável. Kaldor não podia ter sido mais presciente quando escreveu o seguinte: “Mas é um erro perigoso acreditar que a união monetária e económica pode preceder a união política, ou que actuará como (nas palavras do relatório Werner) ‘um fermento na evolução para uma união política que, em todo o caso, no longo prazo será indispensável.’ Porque, se a criação de uma união monetária, e de uma Comunidade que controle os orçamentos nacionais, gerar pressões que levem à ruptura do sistema, isso impedirá o desenvolvimento da união política, em vez de a promover.”

 Dez anos depois da sua criação, e contradizendo o optimismo do pensamento oficial, a Zona Euro mergulhou numa gravíssima crise que prolongou e aprofundou os efeitos da sua participação na crise financeira iniciada nos EUA em 2007-8. De facto, é preciso esclarecer que a Zona Euro não exerceu qualquer efeito protector dos Estadosmembros nesta crise. Muito pelo contrário, teve uma participação activa na gestação desta crise através da imbricação dos seus maiores bancos na rede financeira global, em particular na chamada “banca sombra”, o negócio financeiro desregulado que transacciona produtos complexos sem relação directa com a economia real. O congelamento do crédito interbancário na Zona Euro, gerado pela desconfiança mútua relativamente à qualidade dos respectivos balanços, e a súbita insolvência de alguns bancos face ao colapso no valor dos seus activos financeiros, acabariam por atingir os países da periferia. Os bancos destes países viram-se, repentinamente, sem acesso à reciclagem da dívida que sustentava a sua relação com os bancos do centro da Zona Euro. Como era previsível, a livre circulação de capitais sem risco cambial, na expectativa de bons negócios no imobiliário e noutros sectores abrigados da concorrência, facilitou a entrada de capital à procura de melhores oportunidades de lucro, a que se juntou o crédito alimentado pela liquidez fornecida pelos bancos do centro, incluindo o financiamento das importações, agora sem limites quanto à disponibilidade de divisas. Com uma taxa de juro baixa, fixada em função da necessidade de recuperar a economia alemã do esforço da reunificação, mas com inflação superior na periferia, o endividamento nestes países fazia-se a uma taxa de juro real negativa. Com moeda e taxa de juro únicas, o endividamento descontrolado na periferia era inevitável; o que acabou, repentinamente, entre 2008 e 2009.

 Porém, ao contrário dos EUA, que mobilizaram de imediato a política orçamental para atenuar o choque sobre o emprego, ao mesmo tempo que a Reserva Federal criava toda a liquidez necessária para estabilizar o sistema financeiro, a Zona Euro apenas foi capaz de uma tímida iniciativa de investimento público a realizar por cada país, decidida no final de 2009, e pouco depois condenada pelo governador do BCE num artigo publicado no Financial Times (22 de Junho 2010) apelando ao fim dos estímulos orçamentais e à execução da chamada ‘política de austeridade’. Assim, enquanto os EUA davam continuidade às políticas de recuperação, a Zona Euro afastou-se da trajectória de recuperação e, em 2012, mergulhou novamente na recessão.

 A falta de uma vertente orçamental, como importante factor de crise da Zona Euro, continua na ordem do dia. Paul De Grauwe (2013) retoma esse argumento e junta-lhe outro, o da ausência de um verdadeiro banco central. Por imposição do Tratado da UEM, o BCE está impedido de financiar os Estados-membros, o que faz deles reféns dos humores da especulação financeira e dos obscuros critérios das agências de notação.

 Em boa verdade, a gestação da crise começou logo após o Tratado de Maastricht com a preparação para a entrada na moeda única. Os países da periferia abdicaram da desvalorização das suas moedas ficando a sua competitividade determinada pela evolução dos custos internos. Sendo a inflação o factor decisivo, cedo se percebeu que a Alemanha conseguia fazer evoluir os seus custos salariais em linha com uma inflação inferior à dos seus concorrentes, em particular a Itália e a França. Ou seja, na ausência de uma taxa de câmbio nominal susceptível de desvalorização, é a taxa de câmbio real – um indicador da posição relativa dos custos de produção – que sinaliza a competitividade dos sistemas produtivos nacionais. Tendo estes características sociais, culturais, institucionais e políticas muito específicas, naturalmente a dinâmica dos salários e preços será muito diferente no centro e na periferia. A verdade é que, na concorrência pela mais baixa inflação, a Alemanha vence sempre. Após as reformas Hartz (2003-5), a eficácia alemã na contenção salarial permitiu a criação de elevados excedentes comerciais. Em contrapartida, as periferias acumularam défices e dívida externa (Storm, 2017). Portugal, não sendo concorrente directo dos produtos industriais alemães, foi sobretudo afectado pela sobrevalorização do euro, pela abertura do mercado único à China e pelo alargamento da UE a Leste.

 Como se não bastasse a crise financeira, com os seus efeitos no crédito às empresas, consumo, investimento e emprego, a União Europeia acrescentou, a partir de 2010, um novo factor de crise para os países da periferia: a imposição de uma política orçamental recessiva, a liberalização do mercado de trabalho, e o recuo na protecção do frágil Estado social, como condição para os empréstimos que haveriam de garantir a solvência da dívida pública pré-existente e o resgate dos bancos falidos. Mais ainda, desmentindo a ideia de que a moeda única oferecia protecção contra choques externos, a UE chamou o FMI para beneficiar da sua experiência na aplicação da terapia de choque executada noutros continentes, a estratégia consagrada no Consenso de Washington (Chang e Grabel, 2004).

  1. Para onde vai a UEM?

 Temos hoje uma Zona Euro que mantém a sua política orçamental pró-cíclica através do Tratado da UEM e das novas regras elaboradas no pós-crise e inscritas no (abreviadamente designado) Tratado Orçamental. Neste contexto, deu alguns passos em direcção a uma União Bancária, reforçou as competências do Mecanismo Europeu de Estabilidade para que possa resgatar bancos e Estados-membros em dificuldade financeira, e decidiu criar um orçamento para a Zona Euro. Portanto, uma vez estabilizadas as taxas de juro da dívida pública pela intervenção do BCE no mercado secundário, evitada a deflação através da intervenção extraordinária de Flexibilização Monetária (FM) (ou ‘Quantitative Easing’ no jargão dos bancos centrais)(2), e fixada a rotina do controlo dos orçamentos e outras políticas dos Estados-membros através do Semestre Europeu, terá a UE conseguido, finalmente, pôr termo à crise existencial que a ameaçou na última década?

 Preocupados com o futuro, académicos de diferentes disciplinas têm insistido na necessidade de reformas na Zona Euro como condição de sobrevivência da União Económica e Monetária (UEM) (De Grauwe, 2013; O’Rourke & Taylor, 2013; Copelovitch, Frieden, e Walter, 2016). De Grauwe é um dos que, desde muito cedo, defendeu a necessidade de um seguro europeu de depósitos no âmbito de uma União Bancária, alguma mutualização da dívida pública, uma coordenação das políticas que obrigue as economias excedentárias à partilha dos esforços de reequilíbrio macroeconómico e um orçamento comunitário que realize transferências significativas do centro para a periferia. Reconhecendo a resistência que estas propostas enfrentam, De Grauwe defende a importância de pequenos passos nesta direcção porque, em seu entender, reforçam a credibilidade do projecto e a sua viabilidade. Também merecem destaque as propostas do economista norte-americano Barry Eichengreen (2016) que, por sua vez, defende um BCE mais flexível na definição da meta da inflação e menos dependente das pressões vindas da Alemanha, um seguro de depósitos como pilar de confiança na União Bancária, e uma política orçamental mais descentralizada – reconhece que é politicamente impossível criar um orçamento supranacional – mas sob condição de não-resgate dos bancos que tenham financiado défices excessivos do respectivo Estado. Finalmente, este economista assume que, para permitir o relançamento das economias mais endividadas, é necessária uma reestruturação das dívidas públicas à escala europeia e admite que, para prevenir futuros abusos, o BCE passaria a adquirir apenas dívida europeia, à semelhança da Reserva Federal dos EUA na sua relação com o Tesouro. Contudo, face à resistência que estas propostas têm enfrentado, há economistas que sugerem uma via mais modesta, tal como a da flexibilização do critério do défice público, designadamente, fazendo com que não inclua o investimento que promova crescimento económico dado que, em última análise, é gerador de receita fiscal (Truger, 2016)(3).

 A verdade é que estas propostas têm sistematicamente esbarrado na recusa da Alemanha, e de outros países, dado que quase todas são entendidas como passos em direcção à “UE de transferências”, um horizonte politicamente inaceitável nesses países. Num texto muito clarificador deste impasse, Martins (2019, p. 68) assinala esta resistência e acrescenta a seguinte: “De igual modo, parece infundada a esperança de que o fascínio pela independência dos bancos centrais, a irrelevância da política orçamental como elemento de gestão macroeconómica ou a simpatia pela narrativa das reformas estruturais deixem de fazer parte da mundividência da Comissão: se dúvidas houvesse, bastaria olhar para os country report do Semestre Europeu.”

 Na passagem de 2018 para 2019, os indicadores da conjuntura económica têm mostrado uma significativa redução no crescimento, em particular na Alemanha. Nos últimos meses, o discurso optimista quanto à superação da crise parece ter-se evaporado e, como seria de esperar, ressurgem as interrogações sobre a capacidade da Zona Euro para enfrentar uma nova recessão. A UE evitou as reformas acima mencionadas, refugiando-se na proclamação de princípios, em decisões que passam ao lado dos problemas, ou em medidas sem escala para serem eficazes.

Reconhecidamente, a UE está hoje muito mais fragilizada do ponto de vista social, económico-financeiro e político. O resultado do referendo no Reino Unido que levou à penosa negociação do Brexit; o resultado do referendo constitucional em Itália que reduziu substancialmente o peso eleitoral do Partido Democrático e permitiu a emergência de um governo eurocrítico que não perde uma oportunidade para afrontar o statu quo europeu; a contestação na rua do presidente da França, agora com um baixíssimo nível de popularidade, são outros tantos factores de crise que acrescentam novas interrogações quanto ao futuro da UE(4).

 Talvez tenha sido travada a ameaça ao euro a partir dos mercados financeiros, mas, entretanto, surgiu uma nova frente, a da ameaça política. O generalizado crescimento eleitoral da extrema-direita, incluindo na Alemanha, suscita uma interrogação que remete para uma página negra da História da Europa. Até que ponto a resposta à crise, no quadro de uma política orçamental pró-cíclica permanente, apenas flexível para os países do centro, a decisão tardia de resgatar os países em dificuldade financeira com imposição de uma política orçamental cruel e ineficaz, e o imenso endividamento dos Estados causado pelo desvario do negócio bancário, estão na raiz da viragem do voto de largos sectores da população europeia mais desfavorecida, e da classe média mais frustrada, para os partidos de extrema-direita?

 Um estudo recente, suportado por uma análise empírica do comportamento eleitoral, veio reforçar uma tese bem conhecida sobre a ascensão de Hitler ao poder, a de que a austeridade aplicada pelo chanceler Brüning criou o desemprego, o sofrimento e a revolta que empurraram a classe média para o nazismo: “Assumindo pressupostos razoáveis, os Nazis teriam enfrentado significativa dificuldade em formar uma coligação com o Partido Popular Nacional Alemão (DNVP) em 1933, para obterem a maioria, se a austeridade não tivesse sido aplicada com tanta persistência.” (GalofréVilà, Meissner, McKee & Stuckler, 2018, p. 3). O que este estudo nos diz é importante porque permite entender a encruzilhada em que a UE se encontra de uma forma bem diferente do discurso dominante, sobretudo centrado na crítica da xenofobia e do discurso da extrema-direita. Assim, por muito importante que seja fazer essa denúncia, a verdade é que ela passa ao lado da principal causa do sucesso eleitoral da extremadireita e, dessa forma, afasta do debate público o modelo económico da UE marcado pelo pensamento ordoliberal (Dullien & Guérot, 2012) e pelos interesses da Alemanha (Wyplosz, 2017). O dano que esse modelo produziu na primeira década de existência da UEM, reforçado pela crise da segunda década, é a causa da crise de legitimidade que atingiu as democracias europeias. Contudo, persistindo a Alemanha na recusa das reformas que, na opinião de tantos investigadores e personalidades de relevo, são indispensáveis à sobrevivência da UE, então será necessário ir mais fundo na análise das motivações da Alemanha para procurar entender melhor o que está em causa nesta tragédia (Mody, 2018).

4.O papel da Alemanha

 Desde logo, é preciso recordar que um sistema monetário de câmbios fixos é gerador de tensões que, mais tarde ou mais cedo, levam à sua dissolução. Cabe aqui lembrar o célebre trilema de Mundell-Fleming: não é possível manter, simultaneamente, a livre circulação de capitais, câmbios fixos, e autonomia da política monetária; um dos vértices do triângulo terá de ser descartado, seja ele qual for. Recorrendo a este esquema, compreende-se facilmente o mal-estar de muitos países durante a vigência do Sistema Monetário Europeu (SME), nos anos que precederam a adopção do euro, com destaque para a França, Reino Unido e Itália. Uma taxa de juro mais elevada que nos restantes países foi adoptada pela Alemanha para travar a inflação, na sequência da enorme despesa com a reunificação, o que obrigou os outros países a subirem as suas taxas de juro. Caso contrário, haveria fuga de capitais para a Alemanha. Porém, uma subida das taxas de juro estava longe de ser conveniente para esses países, tendo em conta o seu nível de desemprego. Ou seja, para manter a autonomia da política monetária face à Alemanha, os restantes países teriam de abdicar de um dos outros vértices do triângulo: ou limitavam a circulação de capitais, ou abdicavam do câmbio fixo. Como sabemos, após uma tentativa de defender a sua autonomia sem alterar o contexto da política, enfrentando um ataque especulativo que testou o limite do seu stock de divisas, o Reino Unido e a Itália optaram por abandonar o Mecanismo das Taxas de Câmbio do SME.

 O avanço para a união monetária, liderado por François Mitterrand e a sua equipa de conselheiros, foi motivado por um feixe de razões: o receio de uma Alemanha reunificada e dominante a Leste, a necessidade de pôr termo à hegemonia monetária alemã e, também para preservar a paz, a vontade de criar um enquadramento político que produzisse uma “Alemanha europeia”. Pelo que hoje sabemos, a enorme heterogeneidade das sociedades europeias não foi tida em conta ao mais alto nível do Estado, nem foi tido em conta o que tal significa quando não está disponível uma taxa de câmbio para ajustar os desequilíbrios externos. O voluntarismo francês, onde pontificava Delors, estava embebido do europeísmo que fervilhou durante a guerra, muito enraizado no quadro cognitivo do regime de câmbios fixos do padrão-ouro, ignorando as lições do fracasso deste regime. Bem diferente era a atitude do lado alemão. Sabendo que, na moeda única, a eliminação de um défice externo noutros países teria de ser feita através da redução dos preços (com destaque para os salários), para recuperar a competitividade perdida com uma inflação superior à alemã, e sabendo bem que a disciplina dos trabalhadores alemães, e a sua capacidade de gerar consensos, não tinha paralelo, a equipa do chanceler Kohl deixou claro, desde o início, que não aceitaria resgates da dívida de outros países. Para os alemães, era evidente que, para compensar a quebra na procura externa, os países menos competitivos não iriam executar uma desinflação competitiva, a chamada ‘desvalorização interna’. Em princípio, procurariam manter o seu crescimento com défices públicos. Partindo desta visão mais realista da heterogeneidade europeia, os alemães impuseram aos franceses uma união monetária nas suas condições: não há resgates, não há transferências, e o BCE será herdeiro do Bundesbank. Do lado da França, faltou o discernimento no topo da hierarquia do Estado quanto às consequências da perda da soberania monetária, no quadro da liberalização dos fluxos financeiros no Mercado Único. Prevaleceu o europeísmo beato que olhava para Maastricht “com uma crença mágica na capacidade de a Europa, um dia, se constituir como nação.” (Chevènement, 2013, p. 249)(5). Na realidade, o povo francês que votou contra o Tratado de Maastricht (49%) estava mais consciente do que as suas elites do que significava esta opção estruturante do seu futuro. Aliás, há boas razões para afirmar que os estratos da sociedade francesa que em 2018 lançaram o movimento dos Coletes Amarelos são, económica e sociologicamente, idênticos aos que votaram pelo Não em 1992 (Guilluy, 2018).   

Sabendo que o realismo alemão quanto à necessidade de uma ‘desvalorização interna’ que substitua a desvalorização cambial atravessa os textos da UEM, então faz sentido a insistência da Comissão Europeia (CE) na execução de um conjunto de reformas que não têm uma relação imediata com os orçamentos dos Estados-membros. A insistência em reformas laborais, limitação da actividade sindical, liberalização de várias profissões, e a privatização de serviços de saúde ou do sistema de pensões, têm por objectivo criar as condições materiais e psicológicas para uma rápida descida dos salários, sempre que um ajustamento externo exija a ‘desvalorização interna’. Nesse contexto, a política de austeridade criará o desemprego que for necessário para fazer baixar os salários, e o ajustamento será tanto mais rápido quanto mais facilmente as pessoas aceitarem reduções salariais, ou seja, quanto maior for a ‘flexibilidade’ do mercado de trabalho. E terá de ser muita para que o mecanismo seja eficaz porque, convém lembrar, os salários são apenas uma parte dos custos de fabrico de um produto industrial. Como a recente crise mostrou, esta política de ajustamento foi um doloroso fracasso (Stiglitz, 2014) e, no entanto, ela continua a ser exigida a um Estado-membro em dificuldade financeira como condição para um apoio, quer do BCE quer do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE).

Do que fica dito, podemos concluir que a configuração da UEM, nos termos em que foi consagrada em Maastricht e, depois, no Tratado Orçamental e nas decisões sobre a União Bancária e o MEE, foi negociada por forma a preservar o paradigma ordoliberal da política económica, assim como os interesses da Alemanha. Contra os que afirmam que a UEM enferma de um mau desenho institucional que terá de ser corrigido, é preciso reafirmar que não era politicamente possível, e não é previsível que venha a ser possível num futuro razoável, criar um poder europeu supranacional com autoridade para gerir a política macroeconómica. A existência de um banco central independente, mandatado para o objectivo de uma inflação muito baixa, e regras muito apertadas e punitivas para a gestão orçamental dos Estados-membros, é o modelo que serve a estratégia mercantilista da Alemanha, o único que considera adequado para a integração europeia. Com a moeda única, desapareceram as crises cambiais e as desvalorizações competitivas e, por outro lado, está garantido que não há resgates e transferências que venham a pesar no orçamento alemão. Após dez anos de aplicação deste modelo, sabemos qual foi o seu resultado e Cesaratto (2011) resume-o assim: “o preço pago pela periferia da Europa para ‘importar a disciplina’ [alemã] foram crescentes desequilíbrios comerciais relativamente à Alemanha [e o respectivo endividamento]. Por outro lado, se a periferia tivesse sido melhor no jogo da Alemanha – por exemplo, evitando um crescimento económico alimentado por entradas de capital barato, mantendo os salários e preços mais competitivos –, então a Europa teria morrido de uma espiral de deflação competitiva.”

 Ou seja, o resultado da integração europeia após Maastricht foi o previsto desde o início por muitos economistas qualificados, mas, dados os constrangimentos impostos pela Alemanha, nem a arquitectura inicial da UEM, nem a sua posterior evolução, podiam ter sido outras. Cabe aqui lembrar o acórdão do Tribunal Constitucional alemão sobre o Tratado de Lisboa que concluiu pela sua aceitação apesar de, ao longo do texto, ter desenvolvido uma elaborada argumentação de que a UE continua a ser um clube de Estados soberanos. Segundo Schönberger (2009), há uma profunda dissonância entre a argumentação do acórdão e a conclusão que aprova o tratado. Segundo este jurista, terão sido razões políticas, em particular a necessidade de preservar a reputação do próprio tribunal perante as elites alemãs, que ditaram um parecer em flagrante contradição com a argumentação jurídica que o antecede. Este caso, pouco referido no debate público sobre a UE, permite-nos entrar no âmago da cultura política alemã e perceber como é frágil a ideia de que a Alemanha acabará por aceitar novos passos que impliquem acréscimo de federalização política. Sendo assim, importa questionar a natureza da UE a que chegámos e interrogarmo-nos sobre o que será razoável antever para a sua evolução.

  1. Entre Estado federal e império

 O facto de a UE ter fronteiras, trabalhar com um direito comunitário que se sobrepõe às legislações nacionais em vários domínios, e realizar eleições para um parlamento, são outros tantos elementos de natureza supranacional que não permitem olhar para a UE como se fosse uma organização internacional. Contudo, também é verdade que são os Estados-membros, e não o parlamento, ou um governo por ele legitimado, que tomam decisões sobre a configuração institucional da UE, em paralelo com o “método comunitário” que legitima o poder da Comissão, e o poder supranacional do BCE. Por outro lado, os recursos próprios da UE são exíguos e os domínios da sua intervenção não se aplicam por igual a todos os Estados-membros. Esta integração heterogénea, no plano hierárquico e no plano horizontal, tornou o processo decisório da UE extremamente complexo, lento e baseado numa cadeia de procedimentos inacessíveis aos cidadãos. Por isso, não admira que tenha aceitação alargada a ideia de que o poder da UE é burocrático e distante, ainda para mais quando o voto não pode alterar o “acquis communautaire”, impedir a erosão do Estado-social, ou é ignorado num domínio sensível, como é o caso da política de imigração.

 Manifestamente, a UE é um híbrido político que não se presta a uma análise fácil.

 Segundo McNamara (2018), para discutir a natureza da UE seria essencial responder à seguinte pergunta: nos nossos dias, que sentimento de solidariedade social partilhada permite legitimar a autoridade política da UE? Se é verdade que, até à crise da chamada “dívida soberana”, a legitimidade da UE foi sendo construída de forma subreptícia, através de uma retórica e de um simbolismo que forneciam a imagem de uma construção europeia a partir dos Estados-membros – o discurso da dupla pertença, da bandeira da UE ao lado da bandeira nacional – após a crise, num clima de aberta contestação, essa legitimação suave e discreta tem-se revelado ineficaz. Após a crise, só um debate aberto das políticas e dos poderes da UE, sem restrições, tabus ou anátemas, poderia constituir o ponto de partida para uma nova legitimação da UE. Contudo, a punição da Grécia em 2015, e a atitude negocial no Brexit, combinadas com um discurso arrogante ao mais alto nível, anulam completamente a possibilidade de uma nova estratégia de legitimação. A Alemanha, apoiada pelas elites dos restantes Estados-membros, não pode assumir o risco de um debate político aberto que, seguramente, fugiria ao seu controlo e estimularia a procura de novos caminhos.

 Como se vê, o papel da Alemanha neste processo de integração não corresponde ao que, na linguagem da teoria política, seria um poder agregador da diversidade no interior do ‘império’ através de medidas criadoras de hegemonia. Por isso, Matthijs e Blyth (2011) lamentavam que: “O problema, hoje, não é a força da Alemanha, mas a fraqueza da Alemanha – a sua relutância em assumir um papel hegemónico.” Contudo, no decurso da crise, a Alemanha acabou por revelar a sua força. O que se viu foi uma força que, embora exercida, sobretudo, nos bastidores e, frequentemente, através de mandatários, mostrou ser a antítese do poder imperial hegemónico e, bem pelo contrário, deu origem a uma onda de animosidade antigermânica inédita no pósguerra.

 Num sentido muito menos benevolente, e centrando-se na integração monetária, Gadrey (2015) recupera a palavra império. Dado que a Alemanha pretende que o resto da UEM viabilize os seus excedentes e, ao mesmo tempo, não quer incorrer em perdas nos seus créditos, nem fazer transferências para suavizar a ‘desvalorização interna’ e os efeitos das ‘reformas estruturais’ nas periferias, a inscrição deste regime em tratados muito dificilmente alteráveis corresponde à constitucionalização de um império. De forma certeira, antecipando a presente disputa comercial com os EUA, Gadrey pergunta: “Para além de um regime de vassalagem no seio do império, colocar-se-ia a questão da emergência de inimigos no exterior do império. Poderão os EUA, a China, etc. (...) aceitar uma drenagem da sua procura interna através de um colossal excedente externo europeu, assim criado para consolidar a dominação alemã da Europa?”

De facto, a situação real da UE aproxima-se mais de uma subordinação férrea dos restantes países ao interesse das elites alemãs e à sua visão da política económica e da organização das sociedades europeias, através das regras, das multas, do veto e da chantagem. Não há a menor dúvida de que a ameaça do BCE de retirar a liquidez aos bancos irlandeses, o recuo de Papandreu no referendo que tinha anunciado, e a sua substituição por Papademos, a substituição de Berlusconi por Monti, ou a retirada de liquidez aos bancos gregos, nenhum destes actos de chantagem política teria sido possível sem o apoio da Alemanha. Seguramente, foram discutidos com Angela Merkel e por ela aprovados. O que, mais uma vez, nos deixa perplexos com a natureza da ‘coisa’.

 Gravier (2011) entende que, com o alargamento da UE a Leste, em 2004 e 2007, ocorreu um salto qualitativo no processo de integração. Este alargamento aumentou muito a diversidade sociocultural e política no seio da UE, uma característica que a aproxima de um modelo imperial que, no seu entendimento, não será compatível com os valores democráticos invocados nos tratados. Mais precisamente, corre-se o risco de uma evolução lenta, não planeada, para um projecto imperial que seria mais difícil de governar e provocaria mais rejeição dos cidadãos da UE. (...) O facto de a estabilização territorial ocorrer antes do estabelecimento de uma estrutura matricial de governação, e do desenvolvimento de uma identidade colectiva, significa que a UE pode vir a funcionar, de facto, no mínimo por longas décadas, como uma ‘federação imperial’ com uma crónica falta de legitimidade. (Grovier, 2011, p. 429).

 A falta de legitimidade da UE tornou-se mais visível depois das iniciativas comunitárias destinadas a contornar os votos de rejeição em sucessivos referendos: o Tratado de Maastricht na Dinamarca, o Tratado de Nice na Irlanda, e o Tratado Constitucional em França e na Holanda. Entretanto, outras formas de deslegitimação da UE se têm vindo a acumular. O Tribunal de Justiça da UE produziu, desde 2007, jurisprudência comunitária que submete a liberdade sindical, e a conflitualidade social que dela decorre, à liberdade económica das empresas e às normas da concorrência que a protegem. Os conhecidos acórdãos Laval e Viking consagraram uma ordem jurídica que proíbe os trabalhadores de um Estado de se defenderem, através da greve, da concorrência salarial imposta por empresas que trazem trabalhadores de outros países. Segundo Supiot (2008), Podemos temer que estes acórdãos possam empurrar um pouco mais a Europa num declive perigoso. Os mecanismos jurídicos próprios da democracia, quer se trate da liberdade eleitoral ou da liberdade sindical, permitem metabolizar os meios da violência política ou social e converter as relações de força em relações de direito. O bloqueamento progressivo de todos estes mecanismos à escala europeia só poderá criar, a prazo, enquistamentos identitários ou corporativos e violência.

 A violência que tomou conta de Paris, no decurso das manifestações do movimento dos Coletes Amarelos, confirmou as palavras de Supiot e, ao mesmo tempo, representam a ruptura com o presidente de França que mais se empenhou num avanço federalista para a integração europeia. O crescimento eleitoral da extrema-direita em toda a Europa e a revolta social em França que teima em não desaparecer (Guilluy, 2018), são sintomas de que largos estratos da população não reconhecem legitimidade ao statu quo político europeu. Há quem atribua este virar de costas aos partidos políticos tradicionais à existência de um ‘défice democrático’ na UE, mas não se vê como tal défice possa ser colmatado na ausência de um povo europeu, a instância detentora da soberania e, por isso, legitimadora do poder. Usando as palavras de Sapir (2016, p. 118), aquilo que os defensores desta UE não compreendem “é que a ordem lógica vai da soberania à legalidade através da legitimidade, o que constitui qualquer sociedade.”

 De facto, não parece possível sustentar uma UE sem “um povo que tenha um sentido de profunda ligação, de apego emocional, a uma comunidade política mais ampla.” (McNamara, 2018, p. 10). Por trás da retórica federal, é provável que os promotores do Mercado Único e da UEM tenham tido dúvidas quanto à emergência, em tempo útil, de uma comunidade que viabilizaria transferências financeiras de grande escala entre as regiões mais ricas e as mais pobres. Consciente ou não do passo que tinha sido dado, a verdade é que o Tratado de Maastricht deu início ao processo de construção de um híbrido político que é um exemplo de “democracia limitada”, uma ideia defendida por Friedrich Hayek. Para o epígono do neoliberalismo, era preciso instituir “uma democracia limitada que renunciaria a um papel na condução da economia de forma a remover qualquer influência política sobre o seu funcionamento.” (Irving, 2017, p. 113). Na lógica da escola alemã do ordoliberalismo, para que a economia preserve a liberdade dos actores económicos e funcione bem, é preciso instituir regras e criar um quadro constitucional que impeça a sua mudança pelo poder político eleito. Dado que para Hayek, e para o pensamento ordoliberal que marcou a sua obra do pós-Guerra, a conflitualidade da vida democrática mata a liberdade económica, é essencial impor limites à democracia e, se necessário, reconfigurar todo o edifício jurídico-político através de uma ditadura transitória (Farrant, McPhail & Berger, 2012). É esta a ideologia subjacente à proposta de inscrição de limites ao défice público na constituição dos Estados-membros da UE, ou à imposição de sanções pesadas no chamado ‘procedimento por défice excessivo’. Assim, talvez possamos concluir que o chamado ‘défice democrático’, que os partidários do avanço para uma federação desejam colmatar, constitui precisamente um elemento central da natureza da construção europeia. Esse ‘défice democrático’ corresponde à ‘democracia limitada’, uma pedra de toque de que a Alemanha não pode prescindir porque teria de renunciar a um importante elemento da sua cultura, teria de renunciar à sua identidade nacional.

  1. Uma perigosa agonia

 A questão mais preocupante é a do preço deste projecto de integração económica e monetária: o sacrifício em vidas frustradas pelo desemprego, degradação das condições de vida com a erosão do Estado-social, desmantelamento do Direito do Trabalho, desigualdade de rendimento e riqueza, em suma, a dramática regressão no processo de desenvolvimento que foi alcançado no pós-Guerra. Como afirmou Streeck, “não me satisfaz que um super-Estado europeu nunca venha a existir porque só a tentativa de lá chegar terá, forçosamente, consequências desastrosas, tanto para a democracia nos países participantes como para as relações entre eles.” (Streeck, 2019, p. 14).

 Hoje, vinte anos depois da criação da UEM, o mal-estar de largos estratos das sociedades europeias, a continuada instabilidade do sistema financeiro, a perversidade das políticas económicas instituídas nos tratados e a crescente animosidade política entre Estados-membros entram pelos olhos de qualquer observador distanciado. Mesmo os mais convictos defensores do ‘projecto europeu’ receiam que o euro não tenha outros vinte anos de vida(6). Por exemplo, o economista irlandês Kevin O’Rourke (2014, p. 16) também já percebeu que a UE se encontra num impasse: “Hoje, a Europa é definida pelos constrangimentos que impõe aos governos, e não pelas possibilidades que lhes abre de melhorar a vida do seu povo. Isto é politicamente insustentável.”

 Sendo um projecto que apenas se mantém porque nenhum dos grandes países está disposto (por enquanto) a pôr em cima da mesa uma proposta de desmantelamento organizado da UE, e porque os cidadãos temem que as consequências de uma saída unilateral seriam terríveis, pode concluir-se que a sustentabilidade política da UE está, hoje, assente no medo. Sabendo-se que o medo é o melhor clima social para o crescimento da extrema-direita, há boas razões para temer que o desmantelamento da UE acabará por acontecer de forma caótica, por iniciativa de governos xenófobos e incompetentes para executar políticas de desenvolvimento. Não sabemos por quanto tempo a agonia se vai arrastar, mas não seria bem melhor “organizar este fim de ciclo com determinação, em vez de o sofrer entre a beatitude, o pânico e a incompreensão? E, desse modo, deixar aberta a possibilidade de, preservando o que resta da amizade entre os povos, dar início um destes dias a cooperações mais pontuais, mais flexíveis e, enfim, mais respeitadoras da soberania dos países?” (Delaume & Cayla, 2017, p. 20-21).

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Notas

(1) O desvario deste europeísmo voluntarista salta à vista num texto de Spinelli (1989, p. 175): “Embora não possa ser dito publicamente, o facto é que, para nascer, a Europa precisa de uma forte tensão russo-americana, e não de um desanuviamento, tal como precisa, para se consolidar, de uma guerra contra a União Soviética, a ser feita no momento certo.”

(2)Ao contrário do que frequentemente se diz, a FM não teve por finalidade estimular o crédito bancário na economia da Zona Euro, e nem poderia produzir tal efeito porque se trata apenas de fornecer liquidez aos bancos através da compra de títulos de dívida. Na verdade, com a FM apenas aumentaram as reservas dos bancos, o que não conduziu, necessariamente, a um aumento do crédito bancário à economia. A razão de ser da FM foi outra: o enorme excedente de liquidez bancária acaba por procurar aplicações com rendibilidade muito interessante fora da Zona Euro, o que implica a venda de euros e, consequentemente, a sua depreciação. A depreciação do euro, com o intuito de fazer subir a inflação através dos bens importados, foi o caminho seguido para evitar que o BCE continuasse a falhar no seu mandato de estabilidade dos preços, numa conjuntura que ameaçava resvalar perigosamente para a deflação.

(3) O recente Tratado de Aachen, anunciado como um reforço do eixo Franco-Alemão foi, sobretudo, um gesto simbólico. Pode ser lido como uma tentativa de revitalizar o clima de cooperação, após a rejeição por Merkel das propostas de reforma da UE feitas por Macron. No entanto, a recente aprovação concedida por Merkel à construção de uma nova conduta de gás proveniente da Rússia (Nord Stream 2), uma alternativa estratégica à conduta que atravessa a Ucrânia, constituiu uma decepção para os países da Europa Central e de Leste, e um reforço da animosidade já existente para com a Alemanha no seio da UE.

(4) Há outras linhas de fractura na UE. Uma delas resulta da actuação do Grupo de Visegrado – Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia – que se opõe à gestão comunitária dos fluxos de refugiados. Outra, é a Liga Hanseática – Dinamarca, Estónia, Finlândia, Irlanda, Letónia, Lituânia, Holanda e Suécia – um grupo de países que recusa uma ‘UE de transferências’. Ainda outra, resulta da deriva dos regimes políticos da Hungria e da Polónia para um tipo de democracia, usualmente qualificado como ‘iliberal’, em ruptura com os princípios consagrados na UE.

(5) Cabe aqui lembrar uma séria advertência de Rudiger Dornbusch (1996), destacado economista norte-americano, sobre a criação da moeda única: “Se as taxas de câmbio, como instrumento de política, são abandonadas, qualquer outra coisa terá de ocupar o seu lugar. Os promotores de Maastricht evitaram, cuidadosamente, referir-se ao que poderia ser. Mercados de trabalho competitivos são a resposta, mas essa é uma palavra feia na Europa do Bem-Estar social.”

(6) “O estado do euro é, assim, um enorme ponto de interrogação. (...) se tudo se mantiver como está, não chegará aos 30 anos.” (Leite, Fevereiro 2019).

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[Artigo tirado do sitio web portugués Ladrões de bicicletas, do 28 de setembro de 2019]