Entrevista a Noam Chomsky: Trump na Casa Branca

C. J. Polychroniou - 20 Dec 2016

Merecidamente ou não Clinton representava umas políticas temidas e odiadas, enquanto Trump era visto como o símbolo da «mudança», embora a natureza dessa mudança requeira um estudo cuidadoso das suas propostas reais, algo que em grande parte faltou no que chegou ao público

- Noam, aconteceu o impensável. Desafiando todos os prognósticos, Donald Trump conseguiu uma vitoria decisiva sobre Hillary Clinton e o homem que Michael Moore descreveu como «um miserável, ignorante, perigoso palhaço a tempo parcial e sociopata a tempo inteiro» será o próximo presidente dos Estádios Unidos. Na sua opinião, quais foram os factos decisivos que levaram os votantes norte-americanos a causar a maior surpresa na história política dos pais?

 Antes de me referir a este assunto, creio que é importante dedicar um momento a pensar no que se passou a 8 de Novembro, uma data que talvez se torne numa das mais transcendentes da história humana, dependendo de qual seja a nossa reacção.  Não é um exagero.

 A notícia mais importante de 8 de Novembro passou quase desapercebida, um facto já de si significativo. Nesse dia a Organização Meteorológica Mundial (OMM) apresentou uma informação na  conferência internacional sobre a mudança climática de Marrocos (COP22) que foi solicitada para fazer avançar o acordo de Paris da COP21. A OMM informou que os últimos cinco anos foram os mais quentes de que há registo. Apresentou a elevação do nível do mar, que vai continuar a aumentar devido à inesperada rapidez do derretimento da capa de gelo polar, principalmente dos enormes glaciares antárcticos. Já neste momento o gelo do Oceano Árctico dos últimos cinco anos é 28% inferior à média dos 29 anos anteriores, o que não só eleva o nível do mar, mas reduz também o efeito de esfriamento que produz o reflexo na calota polar dos raios do sol, o que acelera os efeitos nefastos do aquecimento global. A OMM assinalou ainda que as temperaturas se aproximam perigosamente da meta estabelecida pela COP 21, juntamente com outras informações e prognósticos alarmantes.

Outro acontecimento ocorreu a 8 de Novembro, que também pode chegar a ter uma inusitada importância histórica por razões que por sua vez passaram quase inadvertidas. A 8 de Novembro no país mais poderoso da história houve uma eleição que deixará a sua marca no futuro. O resultado outorgou o controlo total do governo — o Executivo, o Congresso e a Corte Suprema — em mãos do Partido Republicano, que se transformou na organização mais perigosa da história mundial.

 Deixando de lado a última parte, o resto não está em discussão. Esta última parte pode ser um disparate, até escandalosa. Mas será? Os factos sugerem o contrário. O partido está dedicado a apressar a destruição da vida humana organizada. Não existem precedentes históricos para essa postura. É um exagero? Vejamos o que presenciamos.

 Durante as primarias republicanas todos os candidatos negaram que se passaria o que passou, com excepção de sensatos moderados como Jeb Bush, que disse que há problemas mas que não devemos fazer nada porque estamos a produzir mais gás natural graças ao fracking. Ou como John Kasich, que concordou que o aquecimento global é uma realidade, mas acrescentou que «vamos queimar carbono em Ohio e não vamos pedir desculpas por isso».

 O candidato vencedor, agora presidente eleito, pediu para aumentar rapidamente o uso de combustíveis fósseis, incluindo o carbono; eliminar leis, retirar a ajuda a países em desenvolvimento que procurem gerar energias sustentáveis e, em geral, correr a toda a pressa para o precipício.

 Trump já tomou medidas para desmantelar a Agencia de Protecção Ambiental (EPA) ao colocar para a transição um conspícuo (e orgulhoso) negacionista da alteração climática, Myron Ebell. O principal assessor de Trump na energia, o multimilionário executivo do petróleo Harold Hamm, anunciou as suas previsíveis expectativas: eliminação de leis, cortes fiscais para a indústria (e para os ricos e o sector empresarial em geral), maior produção de hidrocarbonetos, levantamento do veto temporário de Obama ao oleoduto do Dakota. O mercado reagiu com rapidez. As acções das empresas de energia dispararam, incluindo a maior mineira carbonífera do mundo, PeabodyEnergy, que se havia declarado em quebra, mas que depois da vitória de Trump registou uma subida de 50%.

 As consequências do negacionismo republicano já se tinham feito sentir. Havia esperanças de que o acordo de Paris da COP21 levasse a um tratado verificável, mas foram abandonadas porque o Congresso republicano não aceitaria qualquer compromisso vinculador, por isso apenas surgiu um acordo voluntário, evidentemente muito mais débil.

 Essas consequências poderão começar a viver-se em breve. Só no Bangladesh espera-se que dezenas de milhões de pessoas se vejam forçadas a escapar das terras baixas nos próximos anos devido à subida do novel do mar e a condições climáticas mais graves, o que vai gerar uma crise migratória que fará empalidecer a actual. Com bastante justiça o climatólogo mais destacado de Bangladesh disse que «estes migrantes deviam ter o direito de mudar-se para os países de onde provêm as emissões de gases. Milhões deviam poder ir para os Estados Unidos». E para as outras nações que aumentaram as suas riquezas enquanto originavam uma nova era geológica, o Antropoceno, caracterizada por uma transformação radical do meio ambiente feita pelo ser humano. Estas consequências catastróficas só irão aumentar, não só no Bangladesh mas também em todo o sul da Ásia, à medida que as temperaturas já por si intoleráveis para os pobres aumentem inexoravelmente e derretam os glaciares himalaios, o que porá em perigo todas as reservas de água. Neste momento na Índia 300 milhões de pessoas carecem de acesso à água potável. E as repercussões terão um alcance muito maior.

 É difícil encontrar as palavras que dão uma dimensão exacta ao facto de os seres humanos estarem a enfrentar a pergunta mais importante da sua história, que é se a vida humana organizada sobreviverá como a conhecemos, quando a resposta é acelerar a corrida para o desastre.

 Observações semelhantes podem fazer-se em outros grandes temas recorrentes à sobrevivência humana: a ameaça da destruição nuclear, presente desde os anos 70 e que agora está a aumentar. Não é menos difícil encontrar palavras para explicar o facto tão surpreendente de que na enorme cobertura informativa do grande espectáculo eleitoral nada disto tenha recebido mais do que simples menções. Pelo menos para mim, é difícil encontra as palavras adequadas.

 Voltando à pergunta formulada, para ser preciso, parece que Hillary Clinton obteve uma leve maioria de votos. A vitória evidente e categórica relaciona-se com aspectos curiosos da política norte americana. Entre outros factores, o Colégio Eleitoral, uma reminiscência da fundação do país como aliança entre vários estados; o sistema «tudo para o vencedor» em cada estado; a manipulação dos distritos eleitorais para dar maior peso aos votos rurais (em eleições anteriores e talvez também nesta, os democratas tinham conseguido uma vantagem cómoda no voto popular para a Câmara dos Representantes, mas uma minoria de eleitos; a taxa elevada de abstenção (em geral cerca da metade em eleições presidenciais, esta incluída). Tem certa importância para o futuro que no escalão dos 18 a 25 anos Clinton ganhou com facilidade e que Sanders teve até um nível maior de apoio. Do interesse de tudo isto dependerá o futuro que a humanidade virá a enfrentar.

 Segundo a informação disponível, Trump bateu todos os recordes em apoio recebido de votantes brancos, classe trabalhadora e classe média baixa, principalmente na taxa de salários de 50 000 a 90 000 dólares, rural e suburbano, sobretudo dos que não tem educação universitária. Estes grupos partilham o repúdio que circula em todo o Ocidente pela classe dominante, como revela o voto imprevisto pelo brexit e o colapso dos partidos de centro na Europa continental. Muitos dos ressentidos e revoltados são vítimas das políticas neoliberais da geração anterior, politicas descritas em testemunho perante o Congresso pelo presidente da Reserva Federal Alan Greenspan, o «San Alan», como lhe chamavam com respeito economistas e outros admiradores, até que a economia milagrosa que ele dirigia caiu em 2007-2008 ameaçando derrubar a economia mundial com ela. Tal como explicava Greenspan durante os seus dias de glória, o êxito no tratamento da economia estava essencialmente baseado na «insegurança crescente dos trabalhadores». Os trabalhadores atemorizados não pediriam aumentos salariais, benefícios ou segurança, mas ficariam satisfeitos com os salários congelados e menores benefícios que são as regras necessárias para uma economia saudável de acordo com as bandeiras neoliberais.

 Os trabalhadores, sujeitos a estas experiências de teoria económica, não estão demasiado contentes com o resultado. Por exemplo, não estão cheios de alegria pelo facto de em 2007, no melhor momento do milagre neoliberal, o salário real dos trabalhadores ser mais baixo que nos anos anteriores ou que o salário real dos trabalhadores masculinos estar ao nível de 1960, enquanto os lucros espectaculares foram para os bolsos de uns poucos lá em cima, uma fracção de 1%. Não como resultado das leis do mercado, de merecimentos ou de sucessos, mas na raiz de decisões políticas concretas, assunto estudado em pormenor pelo economista Dean Baker num trabalho recentemente publicado.

 A questão do salário mínimo mostra o que se está a passar. Durante o período de crescimento alto e igualitário dos anos cinquenta e sessenta, o salário mínimo — que estabelece um patamar para os outros salários — acompanhou a produtividade. Isso acabou com a chegada da doutrina neoliberal. Desde então, o salário mínimo estagnou (em valores reais). Se tivesse continuado como dantes, estaria agora a cerca de 20 dólares à hora. Hoje é considerado uma revolução política que se eleve a 15 dólares.

 Com tudo o que se diz sobre o quase pleno emprego actual, a participação da força laboral encontra-se abaixo do que era a norma. E, para os trabalhadores, existe uma grande diferença entre um trabalho estável na indústria com salários fixados pelo sindicato mais benefícios, como acontecia em anos anteriores, e um trabalho temporário com escassa segurança laboral no sector de serviços. Além dos salários, benefícios e segurança há uma perda de dignidade, de esperança no futuro, de um sentido de pertença ao mundo e no qual se desempenha um papel valioso.

 O impacto está bem delineado no trabalho de Artie Hochshild, um retrato sensível e esclarecedor de um reduto de Trump na Luisiana, onde viveu e trabalhou durante muitos anos. Ela utiliza a imagem de uma fila em que as pessoas estão paradas, esperando avançar a passo firme enquanto trabalham com empenho e se ateêm a todos os valores tradicionais. Mas a sua posição na fila parou. À sua frente vêem que muita gente avança, mas isso não os aflige muito porque essa é a maneira como o estilo norte americano recompensa o (suposto) mérito. O que lhes causa uma verdadeira angústia é o que acontece atrás deles. Acham que as pessoas indignas, que não cumprem as regras lhes passam à frente devido aos programas do governo federal, que equivocadamente julgam destinados a beneficiar os afro-americanos, emigrantes e outros que rejeitam com desprezo. Tudo isso é exacerbado pelas ficções racistas de Reagan sobre os «aproveitadores da Assistência Social» que roubam aos brancos o dinheiro que tanto lhes custou a ganhar e outras fantasias.

 Por vezes a falta de explicações, uma forma de desprezo em si mesma, joga um papel ao fomentar o ódio ao governo. Uma vez conheci um pintor de casas em Bóston, que se tinha tornado um opositor feroz do «diabólico» governo depois que um burocrata de Washington que nada sabia sobre pintura ter organizado uma reunião de pintores a contrato para os informar de que já não podiam usar tinta com chumbo — «a única que funciona» — como eles o faziam, mas o tipo de fato não o entendeu. Isso destruiu a sua pequena empresa, forçando-o a pintar casas por sua conta com elementos de má qualidade que as leis governamentais lhe impuseram.

 Às vezes existem algumas razões reais para estas atitudes contra as burocracias estatais. Hochschild descreve um homem cuja família e amigos sofrem amargamente os efeitos letais da contaminação química mas que despreza o governo e as elites liberais porque para ele a EPA é um tipo ignorante que lhe diz que não pode pescar, mas nada faz contra as fábricas químicas.

 Estas são amostras das vidas reais dos seguidores de Trump, a quem fizeram acreditar que Trump fará alguma coisa para remediar a sua situação difícil, embora um simples olhar sobre as suas propostas fiscais e de outro tipo mostrem o contrário e coloquem um desafio aos activistas que querem afastar o pior e avançar para mudanças desesperadamente necessárias. Sondagens à boca das urnas revelaram que o apoio apaixonado a Trump era essencialmente inspirado na ideia de que ele representava a mudança, enquanto Clinton era entendida como a candidata que perpetuaria o seu desamparo. A «mudança» que Trump provavelmente traz será prejudicial ou pior, mas é compreensível que as consequências não estejam claras para pessoas isoladas numa sociedade atomizada que carece do tipo de associações (como os sindicatos) que possam educá-la e organizá-la. Essa é uma diferença crucial entre o desespero actual e as atitudes em geral optimistas de muitos trabalhadores perante a penúria económica muito pior durante a Grande Depressão dos anos trinta.

 Existem outras razões para o êxito de Trump. Estudos comparativos mostram que a doutrina da supremacia branca calou mais fundo na cultura norte-americana do que na sul-africana e não é segredo que a população branca está em declínio. Em uma ou duas décadas calcula-se que os brancos serão minoria dentro da força laboral e logo depois uma minoria da população. A cultura conservadora tradicional também é entendida sob ataque por causa do triunfo das politicas identitárias, consideradas algo secundário pelas elites que só têm desprezo pelos «americanos trabalhadores, patriotas, religiosos e com verdadeiros valores familiares» que vêem como o país que conhecem se desvanece diante dos seus olhos.

 Uma das dificuldades de aumentar a sensibilidade pública perante as graves ameaças do aquecimento global é que 40% da população nos Estados Unidos não percebe que isso seja um problema, já que Jesus Cristo regressará em poucas décadas. Uma percentagem semelhante crê que o mundo foi criado há uns milhares de anos. Se a ciência entra em conflito com a Bíblia, tanto pior para a ciência. Seria difícil encontrar algo comparável noutras sociedades.

 O Partido Democrata abandonou quaisquer preocupações reais pelos trabalhadores nos anos setenta e assim foram arrastados para as filas dos seus mais acérrimos inimigos de classe, que pelo menos simulam falar o mesmo idioma: o estilo camponês de Reagan a fazer caretas e a comer doces, a imagem cuidadosamente cultivada de George W. Bush como um tipo comum que qualquer um pode encontrar num bar, a quem encantava cortar as ervas daninhas no seu rancho com 40 graus de calor e os seus erros de pronuncia mais que fingidos (impensável que falasse assim em Yale) e agora Trump, o porta-voz de pessoas com queixas legitimas, que não só perderam o seu trabalho, mas também um sentido de auto-estima pessoal, e que denunciam um governo que percebem que destruiu as suas vidas (não sem razão).

 Um dos grandes sucessos do discurso hegemónico foi desviar a fúria da classe empresarial para o governo que implementa os programas que os empresários planificam, como os acordos de protecção dos direitos de investidores e empresas que de modo constante e erróneo são chamados «acordos de livre comércio» pelos jornais e comentaristas. Com todas as suas falhas, o governo está em certa medida sob o controle e influência do povo, ao contrário do sector empresarial. É muito vantajoso para o mundo dos negócios fomentar o ódio aos burocratas pedantes do governo e afastar das pessoas a ideia subversiva de que o governo poderia transformar-se num instrumento da vontade popular, um governo de, por e para o povo.

- Trump é o representante de um novo movimento na política norte americana ou esta eleição foi resultado da recusa de alguns votantes em aceitar Hillary Clinton, já que odeiam os Clinton e estão fartos da «política de sempre»?

 De forma nenhuma é nada novo. Os dois partidos políticos correram para a direita durante o período neoliberal. Os novos Democratas de hoje são bastante parecidos com os que costumava chamar-se «republicanos moderados». A «revolução política» que Bernie Sanders exigiu com justa razão não teria surpreendido muito Dwight Eisenhower. Os republicanos dedicaram-se tanto aos ricos e ao sector empresarial que não podem esperar conseguir votos baseados no seu programa verdadeiro e optaram por mobilizar sectores da população que estiveram sempre presentes, mas não como forças politicas organizadas: evangelistas, nacionalistas, racistas e as vítimas das formas de globalização desenhadas para fazer competir os trabalhadores do mundo entre si, enquanto protegem os privilegiados e debilitam as medidas legais e de outro tipo que davam aos trabalhadores algum tipo de protecção, e com os meios de influenciar na tomada de decisões nos sectores públicos e privados de estreita relação, especialmente em relação a uns sindicatos de trabalhadores eficazes.

  As consequências foram evidentes nas recentes primárias republicanas. Cada candidatura vinda das bases — como Michele Bachman, [Herman] Cain ou [Rick] Santorum — tinha sido tão extremista que o establishment republicano teve de utilizar os seus vastos recursos para os derrotar. A diferença em 2016 é que o establishment falhou, muito a seu pesar, como temos visto.

  Merecidamente ou não Clinton representava umas políticas temidas e odiadas, enquanto Trump era visto como o símbolo da «mudança», embora a natureza dessa mudança requeira um estudo cuidadoso das suas propostas reais, algo que em grande parte faltou no que chegou ao público. A campanha em si mesma foi notável, em como se esquivou a certos temas e os media foram condescendentes atendo-se ao conceito de que a verdadeira «objectividade» significa informar fielmente o que acontece nos «círculos de poder», mas sem ir mais adiante.

- Trump afirmou depois da eleição que representará todos os americanos». Como o fará quando o país está tão dividido e tendo já expressado um ódio profundo por tantos grupos dos Estados Unidos, incluindo mulheres e minorias? Observa algum paralelo entre o brexit e a vitória de Donald Trump?

 Existem semelhanças claras com o brexit e também com a subida de partidos ultranacionalistas de extrema-direita na Europa cujos lideres se apressaram a felicitar Trump pela sua vitória considerando-o um dos seus. [Nigel] Farage, [Marine] Le Pen, [Viktor] Orban e outros semelhantes. E estes acontecimentos tornam-se muito aterradores. Olhar para as eleições na Áustria e na Alemanha — Áustria e Alemanha — só nos traz à memória recordações desagradáveis para os que sabem o que se passou nos anos trinta, muito mais para os que o viveram, como eu em criança. Lembro-me de ouvir os discursos de Hitler, sem entender as palavras, embora o seu tom e a resposta do seu público fizessem bastante medo. O primeiro artigo que me lembro de ter escrito foi em Fevereiro de 1939, depois da queda de Barcelona, e a propagação aparentemente inexorável da praga fascista. E por uma estranha coincidência foi em Barcelona onde eu e minha mulher vimos os resultados da eleição presidencial americana de 2016.

 Sobre como Trump vai usar o que promoveu — não criou, só promoveu — não podemos opinar: Talvez a sua característica mais notável seja a sua imprevisibilidade. Muito dependerá das reacções dos que se horrorizarem com a sua actuação e das visões do futuro que projectou.

- Trump não conta com uma ideologia politica credível que guie as suas posições em assuntos económicos, sociais e políticos embora tenha tendências autoritárias claras no seu comportamento. Assim crê que seja valida a pretensão de que Trump possa representar o aparecimento de um «fascismo de rosto amigável» nos Estados Unidos?

 Durante muitos anos escrevi e falei sobre o aparecimento de um ideólogo carismático e honesto nos Estados Unidos, alguém que pudesse aproveitar o medo e a indignação que vem tomando posse da sociedade e que poderia desviá-la dos verdadeiros causadores desse mal-estar para destinatários vulneráveis. Isso, com efeito, poderia levar ao que o sociólogo Bertam Gross denominou «fascismo amistoso» numa análise reveladora de há 35 anos. Mas isso requer um ideólogo sincero, tipo Hitler, não alguém cuja única ideologia é o seu próprio eu. Mas o perigo tem sido autentico durante muitos anos, embora ainda mais agora à luz das forças que Trump desencadeou.

- Com os republicanos na Casa Branca, mas também a controlar as duas Câmaras e a configuração futura do Tribunal Supremo, como serão os Estados Unidos, nos próximos (no mínimo) quatro anos?

 Muito depende das suas nomeações e do seu círculo de assessores. Os primeiros indícios são pouco atraentes, para não dizer pior.

 O Tribunal Supremo estará em mãos de reaccionários por muitos anos, com consequências previsíveis. Se Trump cumprir o seu programa fiscal ao estilo Paul Ryan, haverá benefícios enormes para os mais ricos, calculados pelo Tax Policy Center (Centro de Politica Fiscal) numa redução de impostos de cerca de 4% para o 0,1% mais rico e uma redução substancial generalizada para o extremo superior da escala de rendimentos, mas com quase nenhum alívio fiscal para os demais, que de resto deverão suportar novos e maiores encargos. O respeitado correspondente económico do Financial Times, Martin Wolf, escreve que «as propostas fiscais fariam derramar enormes benefícios para os já muito ricos como o Sr. Trump» enquanto deixariam os outros em apuros., incluindo claro os seus eleitores. A reacção imediata no mundo empresarial revela que as grandes farmacêuticas, Wall Street, a indústria militar, as indústrias da energia e outras instituições maravilhosas desse tipo aguardam um futuro brilhante.

 Um avanço positivo poderia ser o programa de infra-estrutura que Trump prometeu, embora (juntamente com outras informações e comentários) esconda o facto de que se trata no essencial do programa de estímulo de Obama, que teria trazido grandes benefícios à economia e à sociedade em geral, mas que foi eliminado pelo Congresso republicano com o pretexto de que faria estourar o défice. Embora a acusação fosse falsa nesse momento, dadas as taxas de juro muito baixas, aplica-se em grande medida no programa de Trump, agora acompanhado por reduções fiscais extremas para os ricos e o sector empresarial, e o crescimento de gastos do Pentágono.

Mas existe uma saída proporcionada por Dick Cheney quando a explicou a Paul O’Neill, Secretário do Tesouro de Bush, que «Reagan demonstrou que o défice não importa», referindo-se ao défice que os republicanos geram para conseguir apoio popular, deixando aos outros, de preferência os democratas, o trabalho de aplainar o desastre. Essa técnica poderia funcionar, pelo menos por um tempo.

 Há também muitas perguntas sobre as consequências na política externa, a maioria sem resposta.

- Existe uma admiração mútua entre Trump e Putin. Assim, que possibilidades há de podermos presenciar uma nova era nas relações entre os Estados Unidos e a Rússia?

 Uma perspectiva animadora é que poderia haver uma redução na perigosa tensão na fronteira russa: digo bem, na fronteira russa não na fronteira mexicana. Há ali uma história de que não cabe falar agora. É possível também que a Europa possa distanciar-se dos Estados Unidos de Trump, como já deu a entender Merkel e outros lideres europeus e pela voz britânica do poder norte-americano, depois do brexit. Isso poderia levar possivelmente a uma iniciativa europeia para mitigar as tensões e talvez até algo parecido com a visão de Mikail Gorbatchov de um sistema integrado de segurança na Eurásia sem alianças militares, recusado pelos Estados Unidos a favor da OTAN, uma visão revivida há pouco por Putin, embora não saibamos com que seriedade, uma vez que esse gesto foi desvalorizado.

 

- É provável que a politica externa do governo de Trump seja mais ou menos belicista do que a do governo de Obama ou até no de George W. Bush?

 Não creio que se possa responder com segurança. Trump é imprevisível. Há demasiadas perguntas em aberto. O que podemos dizer é que o activismo e a mobilização popular bem organizados e dirigidos podem ser muito importantes.

E deveríamos ter em mente que é muito o que está em jogo.

 

[Entrevista tirada do sitio web portugués ODiario.info, do 17 de decembro de 2016]