Europa: nada mais do que o caos?
A vontade dos povos, ignorada e expulsa pela porta da UE, está a voltar a entrar pela janela das eleições nacionais. Das eleições francesas, a que se seguirão as da Alemanha e de outros países europeus, emerge a onda crescente de protesto popular contra a UE, responsável pelo declínio económico e social dos povos, pelas políticas verdes antipopulares e pelo envolvimento da Europa nas estratégias belicosas da NATO contra a Rússia
Eleições francesas: venceu a ingovernabilidade
As coligações eleitorais não implicam programas políticos convergentes, nem prevêem a formação de composições governativas correspondentes a alianças eleitorais. Macron ambicionava a formação de uma grande coligação que assegurasse a continuidade da sua linha política, mas as suas esperanças foram em vão, dado o estilhaçamento do quadro político francês resultante das eleições. No novo parlamento, não surgiu uma maioria absoluta, nem em número nem em programa político. Pelo contrário, existem visões políticas opostas entre a Nova Frente Popular e Macron, tanto em termos económicos como de política externa. Macron gaba-se do sucesso político do seu partido, que, apesar de ter ressuscitado da coligação da desistência, perdeu mais de 80 lugares.
Numa França dividida por oposições políticas extremas, é previsível a intensificação de conflitos exasperados, no contexto de uma situação política de progressiva degradação social e económica. É previsível um estado de ingovernabilidade, em que a crise institucional poderá aprofundar-se, tendo em vista as próximas eleições presidenciais que implicariam escolhas radicais entre extremismos opostos. As manobras políticas “engenhosas” de Macron apenas produziram lacerações profundas no país e, por conseguinte, uma crise institucional incipiente da Quinta República. É também previsível que tais cenários se repitam por toda a Europa.
Inversão dos percursos históricos e dos recursos
Na realidade, estamos a assistir à reprodução dos fenómenos do século XX (Marx dizia que “a história repete-se sempre duas vezes: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”, embora a atual farsa europeia possa ter um epílogo trágico), mas numa versão completamente invertida. A partir da guerra de Espanha, formaram-se frentes populares unidas entre as forças antifascistas que se opunham às potências do Eixo. A estratégia estalinista previa a hegemonia dos partidos comunistas satélites sobre todas as outras componentes antifascistas, a fim de estabelecer regimes marxistas pró-soviéticos após a derrota do nazi-fascismo. Ao invés, na atual coligação antifascista de desistência anti-esquerdista, como ficou demonstrado nestas eleições francesas, são os partidos de esquerda que se transformam em instrumentos de preservação do sistema capitalista, credenciando-se como garantes da atual ordem europeia e atlântica. De facto, Macron deve a sua ressurreição política ao apoio da esquerda.
A mesma situação será reproduzida na Alemanha, dada a intenção explícita das forças políticas atualmente no governo e colapsadas nas lições europeias de marginalizar a AfD.
Truques antigos: evocar os males do passado para esconder os do presente. A própria equação Le Pen = Pétain é o resultado de uma narrativa manipulada e invertida da realidade. Macron é um Rothschild Boy e o seu partido é artificial, inventado pelas oligarquias financeiras para impor uma força política centrista, liberal e tecnocrática no governo de França, para salvaguardar os interesses das elites financeiras da UE, após o quase desaparecimento das forças políticas tradicionais gaullistas, republicanas e socialistas. Pode portanto deduzir-se que, em vez de Le Pen, foi Macron que reencarnou no papel de Pétain, como o gauleiter encarregado de garantir a subsistência de um regime de ocupação atlântica e de preservar um sistema pró-europeu, capitalista, antipopular e repressivo.
Estas eleições não produziram uma maioria que tenha os números para governar. Assim, colocam-se duas hipóteses: a de um governo minoritário e a de um governo técnico. A de um governo técnico representaria apenas a continuidade perfeita dos anteriores governos macronianos, rejeitados pelos eleitores.
Os sucessivos governos a partir de 2017, com a presidência Macron, foram consistentemente formados por tecnocratas, cuja função era a gestão da governação económica e financeira do país. Não foram precisamente os governos de tecnocratas macronianos os responsáveis por esta crise institucional, antes da crise económica e social, para além da política externa falhada de Macron, que gerou esta explosão de protesto popular, que se identificou com a direita de Le Pen e a esquerda de Mélenchon?
Serão os povos que farão ruir a UE
As recentes eleições europeias sancionaram o fim do eixo franco-alemão, sobre o qual a União Europeia sempre se estruturou. Este eixo assentava na combinação entre o poder nuclear francês, o papel geopolítico global da França e a primazia do poder económico alemão. Com o fim da Françafrique, a França sofreu uma redução drástica do seu papel internacional e, com a interrupção do fornecimento barato de energia russa, associada ao declínio das exportações alemãs para a China, o poder económico da Alemanha diminuiu.
Por conseguinte, o eixo franco-alemão dissolveu-se porque deixou de ter razão de existir. O significado político das recentes eleições europeias foi obscurecido. A mesma coligação no Parlamento Europeu reapareceu como se nada tivesse acontecido. A UE é um corpo tecnocrático blindado. A estrutura económica e financeira da UE, consagrada nos Tratados, só pode ter uma representação política de acordo com ela. Uma UE diferente é impensável, logo o seu modelo económico e político é irreformável. Uma Europa diferente pressupõe a dissolução da UE.
Mas a vontade dos povos, ignorada e expulsa pela porta da UE, está a voltar a entrar pela janela das eleições nacionais. Das eleições francesas, a que se seguirão as da Alemanha e de outros países europeus, emerge a onda crescente de protesto popular contra a UE, responsável pelo declínio económico e social dos povos, pelas políticas verdes antipopulares e pelo envolvimento da Europa nas estratégias belicosas da NATO contra a Rússia. Como refere C. Caldwell, no New York Times,‘O verdadeiro problema da União [não é] o que ela faz, mas o que ela é, (…) um projeto impiedoso de construção de Estados como o do cardeal Richelieu sob Luís XIII’.
A independência dos Estados, cuja política económica é imposta pela UE, cuja política externa foi transferida para a NATO e cuja soberania é prerrogativa dos mercados, únicos árbitros da legitimidade política dos governos. É, de facto, ao julgamento dos mercados, que podem a qualquer momento levar um Estado à falência, que cabe o direito de vida e de morte dos povos. Mas os conflitos sociais no interior dos Estados multiplicar-se-ão a tal ponto que conduzirão a um estado de ingovernabilidade dos Estados, que poderá levar ao desmembramento progressivo da UE.
O fracasso das ambições bélicas de Macron
Com estas eleições, Macron quer impor um governo que garanta a continuidade da sua linha política, em conformidade com as diretivas do establishment europeu. A grave crise financeira em que a França se encontra é evidenciada pelo défice de 900 mil milhões da sua situação financeira líquida em 2023. Seria portanto necessário manter o atual afluxo de capitais provenientes da Alemanha, dos Estados árabes do Golfo, nomeadamente do Catar, para a sobrevivência do euro e da própria França.
O declínio económico e social da França está, aliás, bem delineado num artigo de Thierry Meyssan publicado no “L'AntiDiplomat” de 03/07/2024, intitulado “A França perante uma mudança de época”: “No final de 2023, a dívida pública era de 3.101 mil milhões de euros, ou seja, 110,6% do PIB. A administração pública é muito cara, mas oferece serviços de qualidade medíocre.”… ”As fraudes, nomeadamente as fraudes sociais e fiscais, atingiram níveis recorde. A venda ilegal de drogas desempenha um papel económico tão importante (cerca de três mil milhões de euros) que está incluída no cálculo do PIB. As desigualdades são abismais: enquanto quase três milhões de franceses (4,25% da população) são milionários em dólares, quase um terço dos franceses vive com menos de 100 euros a partir do dia 10 do mês.
No entanto, garantir o atual fluxo de financiamento das monarquias do Golfo, que, com a adesão aos BRICS, poderiam desviar os seus investimentos para a China, com a qual a Arábia Saudita realiza as suas transacções comerciais em yuan em vez de dólares, parece problemático.
A política belicosa de Macron contra a Rússia tem objectivos muito específicos. Para além do desejo de vingança contra a Rússia, já responsável pela expulsão da França da Françafrique, a intenção de Macron é fazer com que a França, a única potência nuclear da UE, assuma a liderança europeia e o papel de potência mundial menor ao lado dos EUA.
Acima de tudo, a vaga iniciativa de Macron insere-se num contexto estratégico da NATO, em que a guerra da Ucrânia é de importância vital para a geopolítica americana. A guerra contra a Rússia é, de facto, estrategicamente necessária para os EUA preservarem o seu domínio sobre a Europa. Uma eventual derrota da NATO provocaria um conflito entre Estados europeus que poderia levar à dissolução da própria UE. É verdade que os Estados Unidos, que sempre foram avessos a qualquer projeto de autonomia europeia, poderiam tirar partido dos conflitos internos europeus, com a perspetiva de impor à Europa a governação política da NATO. No entanto, devido ao progressivo afastamento americano da Europa e à sobre-exposição dos EUA nos vários teatros de conflito do mundo, uma crise sistémica na própria Europa poderia revelar-se incontrolável e, a prazo, levar mesmo à saída dos Estados europeus mais relevantes da NATO.
Soberanismo e islamofobia
A questão da imigração tem-se revelado profundamente divisiva entre o eleitorado francês, ao ponto de pôr em causa a própria identidade da França. A imigração, proveniente principalmente das antigas colónias francesas, foi favorecida e incentivada durante décadas, a partir da era de Mitterrand, com a entrada no país de uma grande massa de mão de obra barata, em detrimento das classes trabalhadoras francesas mais pobres. Acima de tudo, a abertura à imigração maciça indiscriminada representou o início do advento da sociedade aberta pós-moderna, de acordo com a visão do mundo multicultural e cosmopolita da ideologia da esquerda radical liberal ocidental.
A integração de massas étnica e culturalmente estranhas na sociedade europeia ter-se-ia realizado através de um processo de assimilação espontânea, ou seja, através da emancipação social promovida pela prosperidade e da adesão simultânea dos imigrantes aos valores universais da democracia ocidental, como a liberdade, o secularismo e os direitos civis. Este projeto acabou por ser um fracasso.
O mito da República, evocado por Macron para criar uma barreira institucional entre todas as forças que se opõem ao lepenismo populista desenfreado, é agora uma imagem ideológica virtual. Macron, ao identificar a França atual com os valores da República ameaçados pela direita do R.N., realizou uma manobra política baseada no direito de se gabar. A linha política reformista de Macron não se inspirou, certamente, nos valores da República, como as virtudes cívicas, os direitos individuais, o Estado de direito (hoje quase desaparecido no Ocidente), mas nos paradigmas do neoliberalismo financeiro globalista de cariz americano, de onde brotou uma estrutura elitista da sociedade inspirada no darwinismo social, que nega estes princípios.
Aliás, as políticas de integração falharam precisamente na medida em que pretenderam impor aos imigrantes os princípios e os costumes da sociedade ocidental como valores universalmente partilhados. Em suma, os imigrantes deveriam aderir a valores éticos, políticos e ideológicos em que os próprios europeus não acreditam há décadas. O modelo neoliberal dominante gerou desigualdade, precariedade, desaparecimento das classes médias e destruição do Estado-providência. Se os povos da Europa se revoltam, condenados à pobreza e à marginalização social numa sociedade sem futuro, os imigrantes, os últimos da escala social, sentem-se alienados de um Ocidente em que não se reconhecem.
Por conseguinte, a dissidência das classes subalternas imigrantes desencadeou um conflito social que, a longo prazo, se transformou num conflito de identidade. A ideologia globalista da sociedade aberta produziu clivagens identitárias irremediáveis. As teses do R.N. de direita, segundo as quais o crescimento demográfico da população árabe-islâmica e africana ameaça a própria identidade da França, com a perspetiva de uma substituição étnica nas próximas décadas, receberam um apoio eleitoral extraordinário. Uma massa árabe-islâmica e africana, que vive de acordo com os seus próprios costumes ético-religiosos, instalou-se durante gerações em vastas áreas metropolitanas de França, onde se fala árabe em vez de francês.
O soberanismo do R.N. já não se baseia tanto na defesa do catolicismo e dos valores tradicionais franceses (atualmente em vias de extinção) como na oposição étnico-cultural. A defesa da identidade transformou-se em islamofobia. O fenómeno da islamofobia resulta de uma falsa interpretação da realidade. De ter concebido a imigração, o terrorismo e o Islão como uma única questão, resultando na criminalização do imigrante muçulmano, considerado um aspirante a terrorista e potencial seguidor do Islão radical do ISIS. Mas esta falsa narrativa preparou o terreno para desencadear um conflito social irremediável entre as classes subalternas, que se revelou um instrumento eficaz de dominação para as classes dominantes.
Parece também muito contraditório exorcizar o espetro da invasão islâmica, contrapondo-o aos valores da nossa civilização e evocando as raízes cristãs numa Europa onde o próprio cristianismo está a desaparecer. Devemos então culpar os árabes-islamistas por não renunciarem à sua identidade? Ou será que a islamofobia nasceu da má consciência de um Ocidente que repudiou os seus valores e a sua cultura? Não terá a islamofobia a sua origem no inconsciente dos povos europeus que vêem nos islamistas uma projeção reflectida da imagem de si próprios, do seu “dasein” no mundo pré-moderno? Os povos da Europa não derramam assim sobre os islamistas um ódio inconsciente que eles próprios nutrem por si próprios?
As falhas provocadas por estas orientações soberanistas reflectem-se também na esfera geopolítica: a islamofobia desenfreada revela-se um fenómeno coerente e funcional às estratégias ocidentais de apoio à guerra de extermínio de Israel contra os palestinianos de Gaza.
Será este o fim da história? Não, é apenas o fim do Ocidente
Estas eleições, para além do seu resultado, puseram em evidência a crise institucional da França, uma crise que, de qualquer modo, afecta todos os países europeus. A instituição presidencial com Macron perdeu a sua credibilidade, o país está dividido por contrastes irreconciliáveis entre campos opostos. Uma situação em que todo o Ocidente, em primeiro lugar os Estados Unidos, é dilacerado por um conflito interno extremo, típico de uma guerra civil latente.
A crise de representatividade do sistema liberal-democrático ocidental é evidente. Uma crise que anuncia o advento de uma era marcada pela instabilidade e pela permanente ingovernabilidade política e social. Mas é precisamente a partir das crises que se geram as grandes transformações da história e surgem novas classes dirigentes.
Nesta crise, manifestam-se os sintomas claros de uma dissolução incipiente da própria civilização ocidental. O Ocidente identificou a história universal consigo próprio. Por isso, a teoria do “fim da história” de Francis Fukuyama tem uma correspondência óbvia com o fim do Ocidente, que já se concebeu como o fim último da própria história e como a encarnação do destino de toda a humanidade. Fim do Ocidente, fim da história. Mas será que a Europa pode sobreviver ao fim do Ocidente: só resta o caos?
[Artigo tirado do sitio web portugués Geopol, do 21 de setembro de 2024]