Na antecâmara da guerra mundial

José Goulão - 28 Out 2022

A unidade europeia manifesta-se apenas quando se trata de atacar salários, de impôr uma austeridade cada vez mais institucionalizada e de amputar direitos sociais, políticos e humanos elementares. A guerra, como agora se demonstra, é a plataforma onde é mais fácil congregar as vontades e interesses dos dirigentes europeus –na verdade, dos seus mandantes– transformando-os numa ameaça potencialmente letal para os cidadãos

 A União Europeia, sem qualquer surpresa, deu passos inconscientes e decisivos: a partir de agora não são necessárias previsões nem especulações, a guerra iniciada em 2014 pelo regime nazi da Ucrânia contra as populações da região do Donbass atingiu envergadura mundial. No terreno não se opõem já a NATO e a Rússia –a Ucrânia é somente o campo de batalha original– porque a União Europeia, enquanto tal, decidiu envolver-se directamente e também provocar o Irão, estendendo o conflito para o Médio Oriente. O movimento cria um cenário propício a novos ajustamentos e perspectivas por parte de alianças político-militares assumidas ou não assumidas através de toda a Eurásia. Agravam-se antagonismos até agora sublimados e que não pouparão continentes.

 Os membros dos actuais governos europeus, quando a história lhes fizer justiça, ficarão anotados como seres transtornados perigosos e sem coluna vertebral que aceitaram jogar com a vida de dezenas de milhões de pessoas, incluindo os seus próprios cidadãos. E o executivo da República Portuguesa fez até questão de não ser discreto nas provocações dirigidas contra inimigos criados artificialmente numa guerra com a qual os portugueses nada têm a ver.

 Os governos europeus, na sua ânsia de cumprirem as ordens de serviço que lhes são enviadas de Washington e de tentarem igualmente salvar o decadente Biden de uma hecatombe eleitoral em 8 de Novembro, decidiram impor sanções ao Irão por vender drones à Rússia; e também investir mais umas centenas de milhões de euros para treinar, em solo da União Europeia, pelo menos 15 mil soldados ucranianos. Esta medida, como respondeu de pronto a porta-voz do Ministério russo dos Negócios Estrangeiros, transforma a UE em «parte do conflito», tendo de assumir, por isso, as correspondentes consequências.

 As portas escancararam-se à generalização continental da guerra. E como é absolutamente notória e dramática a falta de bom senso nos dois lados do conflito, os cidadãos europeus deverão consciencializar-se de que o mundo mudou, não há caminho de regresso às situações existentes no período pré-covid e são ínfimas as possibilidades de passarmos pelo que aí vem de uma maneira benigna.

A guerra como factor de unidade

 A União Europeia só é «união» no nome. Sabemos que a famosa «unidade» proclamada por Bruxelas é um mito quando estão em causa as vidas dos mais de 500 milhões de cidadãos dos 27. Não houve unidade quando se tratou de combater a covid, o desconcerto é total para enfrentar o caos energético que as sanções com efeito de boomerang impostas à Rússia estão a gerar –e ainda a procissão vai no adro– a convergência entre os Estados membros quando se trata de frustrar seriamente os ataques ao ambiente e combater as alterações climáticas é uma ridícula história da carochinha.

 A unidade europeia manifesta-se apenas quando se trata de atacar salários, de impôr uma austeridade cada vez mais institucionalizada e de amputar direitos sociais, políticos e humanos elementares. A guerra, como agora se demonstra, é a plataforma onde é mais fácil congregar as vontades e interesses dos dirigentes europeus –na verdade, dos seus mandantes– transformando-os numa ameaça potencialmente letal para os cidadãos.

 A criação e desenvolvimento de um esterco infecto, o tendencialmente totalitário aparelho de propaganda substituindo o espaço da informação e entretenimento, é o complemento de uma estratégia belicista que necessita de uma lavagem cerebral colectiva e da robotização das pessoas para fazer funcionar um sistema perverso contra a natureza humana.

 Os espantosos lucros que têm vindo a ser registados por grandes empresas e grupos económicos actuando a montante e jusante da indústria e do exercício da guerra, receitas criminosas essas que sugam os cidadãos e famílias das suas capacidades de sobrevivência decente, explicam muitas das razões motivadoras da generalização do conflito armado, mas não abrangem o panorama completo.

Confronto existencial

 Como se tem dito, há um confronto existencial entre duas formas opostas de encarar a ordem internacional –unipolar, a existente, e multipolar, a nascente– que chegou a uma fase de guerra da qual nenhuma das partes admite recuar.

 A União Europeia, ao imiscuir-se directamente no conflito onde tem participado sob o chapéu da NATO, assumiu sem disfarces a sua vertente colonial/imperial da unipolaridade e tornou-se um alvo declarado, pondo em risco a vida de centenas de milhões de pessoas para que uma ínfima minoria delas possa continuar a beneficiar da extorsão criminosa do resto do mundo. Em nome da «civilização ocidental», superior a todas as outras por desígnio de um nunca desentranhado espírito de cruzada para universalizar os «valores cristãos».

 O inimitável Josep Borrell, «ministro dos negócios estrangeiros» da UE servido por uma alma de criminoso de guerra, expôs em Bruges aos futuros eurocratas, numa simples e inspirada frase, a maneira como as cliques europeias encaram o planeta: a União Europeia «é um jardim, o resto do mundo é uma selva» e existe o risco de «a selva poder invadir o jardim».

 Tudo fica explicado. Daí que o tornarem-se parte activa de uma guerra para salvar o «jardim» e conter a «selva», generalizando as provocações apesar do risco de ampliar a envergadura do confronto, seja um passo natural que os governos da UE e toda a camada desumanizada da eurocracia acabam de dar.

Do Cabo da Roca ao Extremo Oriente

 De que maneira as decisões mais recentes dos governos da União Europeia contribuem para alargar substancialmente a área potencial de conflito?

 A disponibilidade para treinar, em solo de Estados da União, pelo menos 15 mil efectivos das forças militares ucranianas transformou a União Europeia «num alvo», declarou a porta-voz do Ministério russo dos Negócios Estrangeiros. Quer isso dizer que o recurso directo ou indirecto da Ucrânia a armas e condições operacionais proporcionadas por países da NATO e/ou União Europeia significam a entrada destes em confronto militar com a Rússia. Sobretudo se o regime nazi de Kiev insistir, como tem vindo a fazer, com frequência crescente, em atacar territórios russos.

 A área real do conflito estende-se assim dos cabos atlânticos da Península Ibérica aos confins orientais de Vladivostoque, com o Japão à vista, e o comportamento da União Europeia fica sujeito, para já, a eventuais atitudes russas que agravem ainda mais as consequências económicas e energéticas de que o Ocidente sofre presentemente. A realidade tem demonstrando que a Europa necessita mais da Rússia do que a Rússia do resto da Europa e a situação está longe de atingir os limites mais dramáticos – a Alemanha já começou a perceber do que se trata.

 A hipotética decisão da Rússia de transformar a «operação militar especial» em declaração de guerra à Ucrânia tornará inevitável que todos os países envolvidos no conflito ao lado dos nazis de Kiev –para além dos mercenários de muitas nacionalidades da NATO e UE que já combatem integrados nas forças ucranianas– sejam parte da mesma guerra. Sem esquecer que as principais ofensivas conduzidas pelas forças militares ucranianas são comandadas por operacionais da NATO e guiadas por sistemas tecnológicos de última geração facultados pela aliança e seus ramos privados, como a empresa espacial de Elon Musk.

 A situação é válida, infelizmente até por algumas atitudes específicas, para o caso de Portugal. O governo português teve pressa em confirmar que está disponível para integrar a operação de treino dos soldados ucranianos. Mas não é apenas por isso que se destaca na postura inamistosa em relação à Rússia, que de maneira nenhuma atacou interesses do país e os cidadãos nacionais. Os 250 milhões de dinheiro dos portugueses oferecidos abusivamente –abuso de confiança– por António Costa ao filonazi Zelensky e os 14 tanques enviados para as suas tropas são passos que marcam um comportamento governamental indigno, que ofende e renega a Constituição da República, a democracia portuguesa e a sua génese em 25 de Abril de 1974.

 A decisão governamental de oferecer à Ucrânia, com objectivos militares, os helicópteros Kamov que Moscovo cedera com fins civis e humanitários, os combates aos incêndios, extravasa a perversão ética assumida por Costa e sua equipa (nada de estranhar) e cai na violação dos acordos contratuais com a parte russa.

 Lisboa, desafiando heroicamente o urso russo, insiste na decisão. Tem lógica: Portugal não é o país onde o governo viola a Constituição para se envolver em guerras enquanto as entidades de fiscalização da constitucionalidade estão mudas e quedas? O povo sofre, e possivelmente sofrerá ainda muito mais as consequências deste ultraje; mas que os centros nacionais de decisão não querem saber das pessoas para nada, além de as usar e deitar fora, já nós sabemos há muito.

 Depois há a decisão da União Europeia de impor ainda mais sanções contra o Irão por ter vendido à Rússia drones para fins militares. Há uma enorme efabulação propagandística em torno desta matéria, mas o mais significativo da situação é o facto de a entidade que pune Teerão por vender armas a Moscovo ser a mesma cujos países oferecem, alugam e vendem armas a Kiev.

 É oportuno citar novamente o socialista Borrell, inesgotável fonte de esclarecimentos sobre o verdadeiro «espírito europeu». Diz ele que, ao contrário do que alega o senso comum, existem realmente dois pesos e duas medidas na arena internacional: os nossos interesses são para respeitar, os dos outros não. Nada mais do que a diferença entre o «jardim» colonial e imperial e a «selva» onde o colonialismo e o imperialismo se saciam. Pelo que a União Europeia pode abastecer impunemente Kiev para continuar a guerra, mas o Irão não pode vender armas à Rússia. É, como sempre, a «ordem internacional baseada em regras». A imposição de sanções só pode processar-se no âmbito de decisões da ONU e por aqui se vê como a União Europeia viola ostensivamente, com todo o despudor, o direito internacional. Ou os «nossos valores partilhados» em acção de maneira exemplar.

 A decisão dos governos da União integra de facto o Irão na guerra e vai acicatar Israel não só a fornecer ainda mais armamento letal à Ucrânia mas também a aguçar as garras do regime de apartheid de Telavive no sentido do tão desejado ataque atlantista-sionista contra Teerão. A desestabilização «colorida» em território iraniano é permanente; Síria, Líbano, Iraque, Líbia e todas as guerras por resolver no Médio Oriente poderão ter novos e imprevisíveis desenvolvimentos, regurgitando também a miríade de grupos terroristas «islâmicos» subordinados à NATO, aliás muito bem relacionados com as organizações nazis que governam Kiev.

A Eurásia em fogo

 O Irão é parte do principal núcleo da multipolaridade soberana em construção, a par da Rússia e da China. É improvável que cada um de nós faça ideia das consequências que podem resultar de uma conjuntura tão sensível que envolve agora o Médio Oriente e toda a Eurásia, a «ilha do mundo», onde se cruzam espaços de influência, alianças, organizações transnacionais em actividade ou em construção e zonas de conspiração e interesses geoestratégicos e económicos alimentados pelas principais potências mundiais.

 A situação chegou a um ponto em que cada acção de uma das partes, neste contexto ainda mais generalizado, terá resposta da outra, na Ucrânia e não só, como vamos percebendo, designadamente pelo comportamento insano da União Europeia –que se sujeita a fazer a parte mais suja da missão terrorista dos Estados Unidos. Temos como certo, até agora, que nenhum dos lados está disposto a ceder ou mesmo a estabelecer contactos para reduzir a tensão com o objectivo de travar o caminho para o abismo -a que chamarão «vitória». Enquanto isso, parece cada vez mais desbravada de obstáculos a via para o recurso às armas nucleares. Quando em Washington e Moscovo se considera anacrónico e ultrapassado o conceito segundo o qual o uso de tais armas de extermínio provocaria a «destruição mutuamente assegurada» cruzou-se uma fatídica linha vermelha. Nas mentes destes seres alienados por pulsões sociopatas entranhou-se já a ideia de que o uso de bombas nucleares é admissível e terá consequências limitadas e controláveis. O princípio do fim.

 Não sabemos o que aí vem, quando e como vem. Entretanto uns continuam alegremente consumindo intrujices da propaganda e pílulas de estupidificação; outros nem querem saber, ainda que tenham umas luzes da gravidade da situação. Mas quem não desiste de lutar pela paz e pela sobrevivência da humanidade, que lute.

 Mesmo sendo governados por pervertidos que escancaram as portas de mais uma guerra com envergadura mundial. Potencialmente definitiva.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Abril Abril, do 23 de outubro de 2022]