O segundo ciclo antineoliberal na América Latina

Emir Sader - 22 Out 2020

Quando voltou a ser submetido a eleições democráticas, como na Argentina e na Bolívia, depois que o povo desses países viveu o que significa a volta do neoliberalismo e pôde comparar com os governos antineolilberais, não teve dúvidas e elegeu, com ampla maioria, governos que retomam a dinâmica antineoliberal

 No livro de ensaios de vários autores “As vias abertas da América Latina”, se anunciava que o que se havia dado na primeira década do século XXI no continente havia sido o primeiro ciclo de governos antineoliberais. Que as condições de luta contra o neoliberalismo seguiriam e, por vias similares ou não, voltariam em um novo ciclo.

 Quando retornou ao governo, a direita latino-americana confirmou que não dispõe de outras alternativas que não seu modelo original neoliberal, com ajustes fiscais, privatizações, corte de recursos públicos e das políticas sociais alienação da soberania nacional e endividamento externo. Foi assim no Equador, na Argentina, no Brasil, na Bolívia. Não aprenderam do seu fracasso anterior e do sucesso dos governos antineoliberais.

 Estes comprovaram o que prometeram: que o combate ao principal problema latino-americano – a desigualdade – só pode ser enfrentado com a prioridade de políticas sociais, que distribuem renda, geram empregos, promovem a democratização da educação e da saúde públicas, reforçar o Estado nas suas funções públicas. Foi assim que os governos que assumiram programas antineoliberais diminuíram como nunca a desigualdade, a exclusão social, a fome e a miséria nos nossos países, na contramão do que ocorre ainda no resto do continente e no mundo.

 Foi assim que esses países conseguiram retomar o desenvolvimento econômico, foi assim que desenvolveram processos de integração regional e intercambio Sul-Sul, especialmente com a China. Foi assim que se conseguiu isolar, mais do que nunca, a influência norte-americana no continente.  Foi um momento muito especial para a América Latina, que projetou os principais líderes da esquerda no mundo: Lula, Evo Morales, Rafael Correa, Pepe Mujica, Hugo Chavez, Nestor e Cristina Kirchner.

 Esse primeiro ciclo cumpriu seu papel, se esgotou e foi substituído por governos neoliberais, conservadores, quando voltou a aumentar as desigualdades, a miséria, a fome, o endividamento externo e a perda de prestigio dos governos. Foi um período curto, porque o neoliberalismo não permite a conquista de apoios sociais duradouros, nem a existência de governos legítimos. No Brasil e na Bolívia voltou ao governo mediante golpes, no Equador mediante a perversão da vontade popular.

 E quando voltou a ser submetido a eleições democráticas, como na Argentina e na Bolívia, depois que o povo desses países viveu o que significa a volta do neoliberalismo e pôde comparar com os governos antineolilberais, não teve dúvidas e elegeu, com ampla maioria, governos que retomam a dinâmica antineoliberal. O que aprender do caminho seguido pela Argentina e pela Bolívia? Em que medida essa via pode ser seguida pelo Equador, pelo Brasil, pelo Uruguai e por outros países do continente?

 Cada país tem suas próprias vias, mas, conforme está inserido na dinâmica do capitalismo internacional, tem que seguir formas de luta e de governo que se adaptem a essa dinâmica. O que significa dizer que a luta contra o neoliberalismo como central continua vigente, conforme é a opção predominante da direita no mundo e nos nossos países. Portanto os nossos governos tem na luta contra o neoliberalismo sua orientação fundamental.

 O que significa, portanto a retomada da centralidade das políticas sociais como forma de combate às desigualdades no continente mais desigual do mundo.  Significa a retomada do papel ativo do Estado, da soberania nacional, dos processos de integração regional.

 Os processos eleitorais da Argentina e da Bolívia tem elementos comuns. Os candidatos não foram os presidentes anteriores, inclusive porque Cristina e Evo foram objeto de processos de judicialização da política, que buscavam tira-los da disputa eleitoral. As forças da esquerda souberam encontrar as formas de disputar e vencer a batalha eleitoral, mediante outros candidatos, com a Cristina como vice em um caso, com o apoio do Evo do exterior, no outro.

 Os novos governos encontram um cenário regional distinto, com governos conservadores no Equador, no Brasil, no Uruguai. Tem como um dos seus objetivos recomeçar os processos de integração regional, para dispor de mais forca no plano regional e internacional. Tem como aliados a oposição no Equador, no Brasil, no Uruguai. Provavelmente terão um presidente dos Estados Unidos menos hostil, com isolamento do atual governo brasileiro, que será levado a menos agressão e necessidade de convivência com um entorno mais negativo para ele. 

 Os novos governos terão que enfrentar problemas que, consensualmente, não puderam ser enfrentados no primeiro ciclo, como encontrar a via de democratização dos meios de comunicação, de democratização do Judiciário, de reforma tributária socialmente justa, de prioridade da luta de ideias, de elaboração de uma política econômica de integração regional, de busca de novas alianças no plano internacional. É uma agenda densa, difícil, mas sem a qual o segundo ciclo enfrentará os mesmos obstáculos do primeiro.

 As eleições de fevereiro no Equador e o desenlace da crise brasileira, que talvez se dê em 2022, serão os próximos passos nesse caminho, que definirão o caráter da terceira década do século XXI na América Latina.

 

[Artigo tirado do sitio web Brasil 247 do 21 de outubro de 2020]