Os golpes de Estado de ontem e de hoje

Marcos Roitman Rosen - 15 Set 2016

Hoje, um golpe de Estado no Brasil (2016) não requer a presença de militares, tanques nas ruas ou bombardeios contra palácios de governo. A nova direita prefere utilizar manobras permitidas pelos poderes Legislativo e Judiciário. É um roubo mais limpo

 Podemos dizer, com certeza, que o ciclo de golpes de Estado na América Latina não foi encerrado. Com o fim da Guerra Fria, surgiu uma ilusão política que tentou impor a ideia de começo de uma nova etapa. No horizonte, se contemplava um futuro de paz, estabilidade política e crescimento econômico. O comunismo havia caído em desgraça e o dispositivo para combatê-lo, que eram os golpes de Estado, perdiam legitimidade.

 A partir de então, se podia utilizar mecanismos considerados mais brandos, sem a necessidade de apelar à violência direta. As pressões para derrubar governos democráticos passaram a se valer de outros métodos, entraram na era das vias constitucionais.

 O golpe de Estado sangrento, com as forças armadas como protagonistas, já não era uma opção viável. Desestabilizar um governo por outras vias, ainda sendo um golpe de Estado, não levantaria tanta suspicácia. Outras instituições poderiam ocupar o papel principal, pois os militares já haviam concluído sua missão na guerra contra a subversão comunista.

 No curto e no médio prazos, os projetos democráticos, socialistas e anticapitalistas não apareciam mais na agenda. O inimigo interno tinha sido neutralizado ou reduzido à sua mínima expressão, através do genocídio, da tortura e da desaparição forçada.

 Estabelecer sistemas políticos fundados na economia de mercado, potencializar a doutrina neoliberal e não perder o trem da globalização passaram a ser o novo dogma de fé. Os votos substituíram os coturnos, as urnas sucederam as metralhadoras. O ajuste político buscou recriar em todos os países o cenário político estadunidense, a eterna dicotomia entre conservadores e liberais, junto com uma emergente a nova direita, tentando ser um meio termo.

 Enquanto isso, a social-democracia ocupou o nicho da esquerda, se impondo no espaço que antes era dos comunistas e socialistas marxistas. O debate das alternativas derivou nos prós e contras da economia de mercado. Capitalismo com rostro humano ou selvagem: Keynes contra Hayek.

 O ciclo que se iniciou no Brasil, em 1964, depois seguido pelos golpes militares na Argentina (1966), Bolívia (1973) e Uruguai (1973), não teria continuidade no Chile. Naquele 11 de setembro de 1973, a derrubada do governo de Salvador Allende e da Unidade Popular foi o primeiro ato de m novo tipo de projeto político-econômico, que supôs a refundação da ordem e o assentamento das bases de um novo modelo.

 O general golpista Augusto Pinochet foi quem definiu: “não tenho prazos, senão metas”. Só assim se pode interpretar a derrota sofrida pela ditadura no plebiscito de 1988. O próprio referendo para acelerar a saída do ditador era uma opção contida na Constituição promulgada durante o regime, em 1980, e que instalou o atual sistema político chileno. Após o triunfo do “NÃO”, Pinochet se manteve no cargo de comandante-chefe das forças armadas, cedeu o poder formal mas se tornou senador vitalício, e declarou aos meios de comunicação: “missão cumprida”. Os militares voltaram aos quartéis. As leis de anistia e negociações ocultas, os chamados “pactos de silêncio”, se impuseram para blindá-los o máximo possível.

 O Brasil inaugurou os golpes de Estado cívico-militares, mas seus ministros de economia não puderam romper o projeto desenvolvimentista de base keynesiana. A principal novidade daquele regime se encontra no apartado repressivo. O Brasil teve a desonra de praticar um tipo de tortura mais científica e sistemática, sob a justificativa da doutrina de segurança nacional. A técnica do pau-de-arara é uma das mais conhecidas. Uma das vítimas desses métodos foi Dilma Rousseff, quem era presidenta da República até a semana passada, quando foi derrubada por um novo tipo de golpe de Estado. Hoje, o Brasil se transforma em guia para novos golpes de Estado. Nem Honduras (2009), nem Paraguai (2012) reúnem todos os requisitos para serem considerados exemplares.

 Os golpes, até o do Chile, em 1973, foram receptores do Estado como ator, espaço geopolítico, onde a população civil era objetivo político e militar. O subversivo podia ser qualquer pessoa. Estava camuflado na família, na escola, no trabalho. Eram mulheres, jovens, homens, mães, esportistas, estudantes, camponeses, operários, funcionários de colarinho branco, intelectuais, artistas, etc. Os milhares de assassinatos de opositores dão uma ideia da dimensão da guerra global contra a subversão comunista. As ditaduras de ontem foram conhecidas como regimes burocráticos e autoritários.

 Hoje, um golpe de Estado no Brasil (2016) não requer a presença de militares, tanques nas ruas ou bombardeios contra palácios de governo. A nova direita prefere utilizar manobras permitidas pelos poderes Legislativo e Judiciário. É um roubo mais limpo, sem muitos efeitos colaterais. Mas não nos enganemos, sempre foi uma opção – se não acontecia antes, era por que simplesmente não foi possível colocá-la em prática. Hoje sim, é viável.

 Na América Latina, a direita jamais alcançou os votos para controlar o parlamento com maioria suficiente para levar adiante um juízo político. Foi o caso do Chile. Em março de 1973, se celebraram eleições legislativas, e a Unidade Popular, aliança allendista, obteve 44% dos votos. Os opositores ficaram longe de alcançar os dois terços necessários para derrubar institucionalmente o presidente Salvador Allende. O melhor que conseguiram com sua pequena maioria foi emitir comunicados conclamando as Forças Armadas ao golpe de Estado, legitimando sua atuação. Isso aconteceu também no Brasil, em 1964, e no Uruguai, naquele mesmo ano de 1973.

 A entrada em cena de governos populares e progressistas, a partir do triunfo de Hugo Chávez na Venezuela (1998), disparou os alarmes. Depois vieram Néstor Kirchner na Argentina, Lula da Silva no Brasil, Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador e Fernando Lugo no Paraguai, além dos governos da Frente Ampla no Uruguai, dos sandinistas na Nicarágua, da Frente Farabundo Martí em El Salvador e de Manuel Zelaya em Honduras. O mapa neoliberal se desmoronava. Poucos poderiam prever, no final do Século XX, a avalanche de projetos anticapitalistas e antineoliberais. O fracasso do golpe de Estado na Venezuela, em 2002, foi uma tentativa de reativar a opção dos golpes de Estado como dispositivo político.

 O triunfo político e econômico do neoliberalismo, considerado irreversível nos Anos 90, havia aposentado os golpes de Estado. Para que agitar aquele fantasma? Enquanto não havia alternativas ao consenso de Washington, a direita não precisou utilizá-los. Na atualidade, eles voltam a se mostrar imprescindíveis para recuperar o espaço perdido. O Brasil marca o caminho, como fez em 1964. O objetivo é acabar com um governo democrático e reverter as políticas sociais, o que os tornam golpe contra o Estado em toda a sua dimensão.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro ‘Agência Carta Maior’, do 13 de setembro de 2016]