Por dentro do coração da Índia rebelde

Vijay Prashad - 21 Xan 2019

A maior greve registrada na história mundial ocorreu na Índia em 2016, quando 180 milhões de trabalhadores protestaram contra o governo do primeiro-ministro Narendra Modi. As demandas de agora são – como sempre – múltiplas, mas centram-se na deterioração do sustento dos trabalhadores, no desaparecimento do próprio trabalho para muitas pessoas e no ataque político aos sindicatos

 As cidades indianas nunca se calam. O som é uma característica constante – as buzinas dos carros, o cantar dos pássaros, os gritos dos vendedores ambulantes, o zumbido constante de um motor de motocicleta. Em 8 de janeiro, uma terça-feira, a Índia entrou em greve. Cerca de 150 milhões de trabalhadores permaneceram longe de seus locais de trabalho. Os sindicatos de esquerda convocaram uma paralisação geral em um país exausto pela crescente desigualdade e tomada por um clima de insatisfação.

 As ruas de Kerala – um Estado governado por uma Frente da Esquerda Democrática – não permaneceram silenciosas. Carros e motos mantiveram seu caminho. Mas as estradas estavam silenciosas. O transporte público parou, porque os sindicatos de transporte ajudaram a liderar a greve. A capital, Thiruvananthapuram, lembrava a cidade de cerca de 20 anos atrás, quando o trânsito era mais leve e a cidade mais calma. Mas não havia nada calmo na atmosfera. Os trabalhadores estavam com raiva. O governo em Delhi continua a traí-los

As maiores greves da História

 Paralisações desta magnitude não são incomuns na Índia. A maior greve registrada na história mundial ocorreu na Índia em 2016, quando 180 milhões de trabalhadores protestaram contra o governo do primeiro-ministro Narendra Modi. As demandas de agora são – como sempre – múltiplas, mas centram-se na deterioração do sustento dos trabalhadores, no desaparecimento do próprio trabalho para muitas pessoas e no ataque político aos sindicatos.

 O governo do primeiro-ministro Modi está ansioso para alterar as leis sindicais. Tapan Sen, o líder do Centro de Sindicatos Indianos (CITU), afirmou que as mudanças levariam, na prática, à escravização dos trabalhadores indianos. São palavras fortes – mas não é impossível.

Liberalização

 Desde que a Índia conquistou a independência, em 1947, tem seguido uma trajetória ambígua de desenvolvimento nacional. Importantes setores da economia permanecem nas mãos do governo, com empresas estatais formadas para garantir bens industriais essenciais aos objetivos de desenvolvimento do país. O setor agrícola também foi organizado para que o governo fornecesse crédito a agricultores a taxas subsidiadas e o governo estabelecesse preços mínimos de aquisição, para assegurar que os agricultores continuassem a cultivar alimentos essenciais.

 Tudo isso mudou em 1991, quando o governo começou a “liberalizar” a economia, privatizar o setor público, reduzir seu papel no mercado agrícola e receber investimentos estrangeiros. O crescimento passou a ser baseado na taxa de retorno do investimento financeiro e não no investimento em pessoas e no seu futuro. A nova orientação política – a liberalização – aumentou a classe média e produziu quantidades fabulosas de dinheiro. Mas também criou uma crise agrária e produziu uma situação precária para os trabalhadores.

Desmobilizar os trabalhadores

 O governo, desde 1991, sabia que não bastava privatizar o setor público e transferir valiosos ativos públicos para a iniciativa privada. Era preciso fazer mais duas coisas.

 Primeiro, era preciso se certificar de que as empresas do setor público fracassariam e perderiam legitimidade. O governo privou essas empresas do setor público de verbas e deixou-as balançar ao vento. Sem investimento, elas não conseguiram renovar-se e começaram a definhar. Seu falência validou o argumento da liberalização, embora a sua tivesse sido fabricada pelo corte total de investmento.

 Segundo, o governo pressionou para quebrar o poder sindical usando os tribunais para minar o direito de greve e usando o legislativo para alterar as leis sindicais. Sindicatos mais fracos significariam trabalhadores desmobilizar, o que significaria que os assalariados ficariam totalmente à mercê das empresas privadas.

Direito de Greve

 Essa greve, como as 17 anteriores, é sobre as condições de vida e sobre o direito de greve. Uma nova lei sindical está em tramitação. Significaria a morte do sindicalismo na Índia. A afirmação de Tapan Sen sobre escravidão parece menos hiperbólica nesse contexto. Se os trabalhadores não têm poder, eles são efetivamente escravizados na empresa. Já é o caso em fábricas que operam quase como campos de concentração.

 Andar pelas fábricas ao longo do corredor de Chennai-Coimbatore, no sul do país ou na área de Manesar, no norte, dá uma ideia do poder destas novas fábricas. São fortaleza, difíceis de penetrar. Ou uma prisão. De qualquer forma, os sindicatos não são bem-vindos lá. São mantidos distantes à força – violência política ou de músculos . Os trabalhadores são frequentemente trazidos de longe, migrantes com poucas raízes nas regiões. Nenhum trabalhador fica muito tempo. Assim que aparentam estar estabelecidos, são removidos.

 A existência de trabalhadores temporários e sindicalistas perseguidos cria um ambiente de trabalho árido. A cultura da solidariedade da classe trabalhadora se desgasta, a violência social cresce – é a sementeira da política neofascista.

Esperança no Estado de Kerala

 Kerala é um lugar único na Índia. Aqui, a cultura da luta continua forte; o orgulho pela história da transformação social de Kerala é evidente. Ao longo dos últimos cem anos, o Estado intensificou seu ataque à hierarquia e à divisão. Práticas sociais arcaicas foram derrotadas, e o movimento de esquerda cultivou a manifestação pública como uma característica normal da vida social.

 Quando a esquerda está no poder – como está agora – ela não introduz novas políticas por decreto. Os movimentos sociais desenvolvem campanhas públicas para conscientizar e construir uma vontade política por trás dos projetos. Esta é uma das razões pelas quais o ar de desesperança não contamina Kerala.

 Em outras partes da Índia, cerca de 300 mil pequenos agricultores cometeram suicídio, boa parte em razão de dívidas agrárias. O professor Siddik Rabiyath, da Universidade de Kerala, conta que os pescadores têm uma dívida maior do que os agricultores, mas que não cometem suicídio. Ele sugere que isso pode ser devido à esperança de que a captura do dia seguinte irá resgatá-los da dívida. E também por causa da atmosfera geral de esperança em Kerala.

 Ano passado, quando este Estado de 35 milhões de habitantes ficou submerso numa inundação, os pescadores pegaram seus barcos e formaram a linha de frente no resgate. Não fizeram isso por dinheiro ou fama, mas devido à tradição de solidariedade social do Estado e à cultura de manifestação pública aqui presente.

Greve

 As linhas ferroviárias de Thiruvananthapuram não funcionaram. Os grevistas sentaram-se nos trilhos e bloquearam os trens. O mesmo ocorreu em Assam, no extremo nordeste da Índia. Eles também bloquearam linhas ferroviárias. A Autoestrada National 16, em Bhubaneswar, no estado oriental de Odisha, tornou-se um estacionamento. Carros e motos não podiam se mover. Escolas e universidades ficaram silenciosas. Os sindicatos patrulhavam as áreas industriais fora da capital, Delhi, e de Chennai. Os ônibus públicos em Mumbai permanecem em seus estacionamentos e as paradas, desertas.

 O governo do Primeiro Ministro Narendra Modi permaneceu em silêncio. Haverá eleições no final desse ano. A temperatura na Índia não está a favor de Modi. Mas essa não é a razão de seu silêncio. Ele criou o hábito de ignorar as ações públicas, de se manter acima de tudo, fingindo que nada está ocorrendo. Se a nova lei sindical entrar em vigor, a Índia abandonará qualquer compromisso com a democracia no local de trabalho. Isso é parte da lenta erosão do processo democrático no país, um movimento em direção ao horror da hierarquia e dominação. Os trabalhadores não querem isso. Estão nas ruas. E têm outros planos para seus futuros.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro Outras Palavras, do 18 de xaneiro de 2019]