Portugal: As diferenças salariais entre mulheres e homens e o desenvolvimento tecnológico

Ana Oliveira - 05 Mar 2021

As alterações na estrutura do mercado de trabalho causadas pelo desenvolvimento tecnológico não trazem qualquer automatismo na redução das diferenças salariais entre mulheres e homens

 1 de Março. Para que no final do ano as mulheres a trabalhar em Portugal recebessem o mesmo do que os homens, estes podiam começar a trabalhar apenas a 1 de Março. De acordo com os dados mais recentes sobre as diferenças salariais entre homens e mulheres (2018), estas recebem menos 16,2% de salário por hora – o equivalente a 52 dias de trabalho – e esta diferença tem sido persistente nos anos mais recentes1.

 A olho nu, numa análise de mais longo prazo, pode dizer-se que a redução das diferenças salariais entre homens e mulheres em Portugal foi significativa – se hoje a diferença é de cerca de 16%, no início dos anos 90 era de quase 25%. Por detrás deste decréscimo aparentemente significativo está o aumento das qualificações das mulheres, pelo que esta análise mais generalista não é suficiente para analisar a existência da elevada assimetria salarial ainda existente.

 Uma análise mais detalhada das diferenças salariais implica comparar os salários de mulheres e homens com características semelhantes, nomeadamente em termos de qualificações. Quando o fazemos, então concluímos que não há melhorias significativas na redução das assimetrias salariais nos últimos 30 anos. Apesar da legislação que impede a discriminação salarial entre mulheres e homens, a realidade em diversos países aponta para a persistência de diversas fontes de discriminação, mais ou menos explícita, nas mais variadas actividades – desde as investigadoras na área da economia serem confrontadas mais frequentemente com comentários paternalistas ou hostis durante seminários do que os seus pares do sexo masculino2, a professoras receberem sistematicamente avaliações pedagógicas inferiores que os seus pares do sexo masculino3, ou mulheres a sofrerem sanções mais graves no emprego do que os seus pares do sexo masculino perante atitudes semelhantes4.

 Independentemente da especificidade dos exemplos dados, a apologia das longas jornadas de trabalho, conjugado com uma desequilibrada distribuição do trabalho doméstico e apoio aos filhos, continua a ser uma das principais razões para que mulheres e homens que partilham as mesmas qualificações e ocupações, tenham folhas salariais com valores substancialmente diferentes56.

 As últimas décadas de desenvolvimento tecnológico têm significado alterações no mercado de trabalho. Em específico, tem-se assistido a uma redução do peso relativo das ocupações ditas «rotineiras» – ocupações que implicam a repetição de processos, e em que uma parte ou o todo dos conteúdos funcionais podem ser integrados/desempenhados por uma tecnologia digital –, em oposição ao aumento da relevância das ocupações «não-rotineiras» – que cobrem um espectro tão diverso como a advocacia, a programação informática ou o apoio social a idosos, e por isso estão em extremos opostos da distribuição salarial. Dadas estas alterações, importa perguntar quais as suas implicações nas assimetrias salariais entre mulheres e homens.

 Foquemo-nos no sector privado, para o qual os dados disponíveis remontam a um período mais longo e permitem um nível de análise que dá suporte aos argumentos desenvolvidos de seguida.

 Podendo haver a expectativa de que o aumento impressionante de qualificações das mulheres trabalhadoras nos últimos 20 anos – em 1995 apenas 5% das trabalhadoras do sector privado tinham formação superior, e em 2017 eram quase 25% – seria suficiente para reduzir as diferenças salariais, a realidade não vai ao encontro dessas expectativas. Muito embora o aumento do número de anos de educação entre as mulheres tenha acontecido a par do aumento do emprego mais qualificado, o que as tem beneficiado no acesso a ocupações «não-rotineiras» que exijam mais qualificações.

 Se este efeito – mulheres mais qualificadas a ocupar os novos postos de trabalho mais qualificados – poderia significar a redução automática das diferenças salariais, emergem dois efeitos mais fortes: (1) a segregação nas ocupações é enorme (i.e., subsistem estereótipos relativamente a profissões de «mulher» e profissões de «homem»), e as mulheres estão sobre-representadas em ocupações mais mal pagas; (2) os salários associados a ocupações com grande percentagem de mulheres tem aumentado menos do que os salários pagos em ocupações desempenhadas sobretudo por homens. Ainda que, quer uns, quer outros, tenham visto os seus salários reais praticamente estagnados nos últimos 20 anos.

 Em conclusão, as alterações na estrutura do mercado de trabalho causadas pelo desenvolvimento tecnológico não trazem qualquer automatismo na redução das diferenças salariais entre mulheres e homens7. Como, aliás, a História da emancipação das mulheres nunca beneficiou de quaisquer automatismos, e foi por via da sua reivindicação e luta que se operaram mudanças e saltos qualitativos nas suas vidas, e na sua participação na vida política, social e cultural.

 A luta por «trabalho de igual valor, salário igual» mantém-se tão actual como no passado e é indissociável das reivindicações pelo direito à contratação colectiva. Uma contratação colectiva que garanta tabelas salariais transparentes, justas, e que valorizem os trabalhadores; uma contratação colectiva que garanta que ocupações com conteúdos funcionais semelhantes sejam igualmente pagas, independentemente de serem desempenhadas por mulheres ou por homens; uma contratação colectiva que preveja direitos de parentalidade, que sirva de arma de combate a qualquer tentativa de discriminação das mulheres, nomeadamente quando são mães, e dos homens quando querem exercer os seus direitos enquanto pais.

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  1. Estima-se que nas empresas públicas as discriminações salariais sejam na ordem dos 13% (dados CGTP-IN, disponíveis aqui). Não sendo publicados dados remuneratórios por sexos nas estatísticas de emprego da administração pública, tal implica um enorme desconhecimento sobre a realidade do sector público.
  2. Dupas, P., Modestino, A.S., Niederle, M., Wolfers, J. and the Seminar Dynamics Collective. Gender and the Dynamics of Economics Seminars.
  3. Mengel, F., Sauermann, J., Zölitz, U. (2019). Gender Bias in Teaching Evaluations, Journal of the European Economic Association, Volume 17, Issue 2, Pages 535–566.
  4. Egan, M., Matvos, G., Seru, A. (2018). When Harry Fired Sally: The Double Standard in Punishing Misconduct (August 8, 2018). Harvard Business School Finance Working Paper No. 19-047.
  5. Goldin, C. (2014), ‘A Grand Gender Convergence: Its Last Chapter’, American Economic Review, 104(4), 1091–119.
  6. Apesar de a prevalência de estudos empíricos assentar nos EUA, as conclusões gerais destes estudos são aplicáveis à realidade portuguesa.
  7. Cortes, G. M., Oliveira, A., Salomons, A. (2020). “Do technological advances reduce the gender wage gap?”, Oxford Review of Economic Policy, Volume 36, Issue 4, Pages 903–924.

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[Artigo tirado do sitio web portugués Abril Abril, do 24 de febreiro de 2021]