Portugal: Combater a precariedade laboral
A precariedade laboral sempre foi uma constante em todas as etapas da evolução do sistema capitalista. Com o pretexto da chamada globalização e o argumento do combate à «crise» produziram-se nas últimas décadas sucessivos pacotes laborais, impôs-se um código do trabalho menos protector dos direitos dos trabalhadores…
A questão do aumento da Taxa Social Única (TSU) para as empresas que contratem trabalhadores com vínculos precários voltou de novo a surgir na agenda política, com alguns sectores a defenderem a inclusão da medida no Orçamento do Estado (OE) para 2018. Por sua vez, no início deste mês o Governo remeteu o assunto para discussão na concertação social.
O tema não é novo. A medida chegou a constar de um acordo assinado na concertação social, em 2008, entre o Governo (PS/Sócrates), as confederações patronais e a UGT1 para ser integrada na lei do Código Contributivo, ficando, no entanto, suspensa desde essa data, mas não enterrada definitivamente.
De facto, uma década depois o Ministro do Trabalho entendeu retomar o assunto, defendendo a aplicação da medida, embora sem precisar o momento de a concretizar (declarações no Fórum da TSF, em Abril deste ano).
Na mesma entrevista, reagindo aos dados publicados no Livro Verde das Relações Laborais sobre contratação a prazo, que indicam ser superior a 30%, o ministro reconheceu ser esse facto inaceitável, referindo que nessa situação «estão trabalhadores que quando assinam um contrato estão a assinar a sua contratação e o seu despedimento, no mesmo momento».
A afirmação de Vieira da Silva é certeira, mas peca por dela não tirar as devidas ilações e, sobretudo, porque não apaga a responsabilidade política que ele tem no estado de degradação da actual situação laboral, nomeadamente quanto à autoria de uma parte significativa na produção de legislação liberalizante da precariedade e dos normativos que visam a destruição da contratação colectiva, a par da inação dos serviços de fiscalização que tutela, por não dotar a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) dos meios técnicos e humanos que são necessários.
Inação é, de resto, a marca que bem se pode atribuir ao Ministério do Trabalho, como prova o facto de não estarem a ser concretizados, com a transparência, a determinação e a celeridade necessárias, os compromissos assumidos quanto ao programa de regularização extraordinária dos trabalhadores com vínculo precário na Administração Pública e no Sector Empresarial do Estado.
É também para fugir às suas responsabilidades que o ministro decidiu sacudir a discussão da precariedade no sector privado para a concertação social, refugiando-se no «poder de veto» que concede às associações patronais.
Obviamente, o patronato agradece a possibilidade de continuar a utilizar este instrumento para defesa dos seus exclusivos interesses, ou seja, no caso em apreço poder usar a concertação como travão a um efectivo combate contra a precariedade e, consequentemente manter altos níveis de exploração.
Conclui-se, portanto, que quando o ministro foi obrigado a reconhecer que no momento em que um trabalhador assina um contrato precário está, simultaneamente, «… a assinar a sua contratação e o seu despedimento», não o fez por convicção e vontade de atacar o problema, mas tão só porque não pode esconder a realidade dramática que os números da precariedade traduzem e, por outro lado, porque a luta dos trabalhadores impõe que não seja esquecido este flagelo, mas antes que seja definitivamente erradicado.
Entretanto, o Bloco de Esquerda veio também defender publicamente o aumento da TSU, com a sua coordenadora a querer assumir a paternidade da medida, ao afirmar em entrevista na Renascença, em 22 de Setembro, que o aumento da TSU para as empresas que recorrem a relações de emprego atípicas é uma exigência do BE para ser introduzida no OE para 2018.
Perante os factos, não podemos deixar de registar a inopinada comunhão de posições a convergirem na desistência de um efectivo combate à precariedade.
É preciso ser claro e denunciar a mistificação: a adequação da taxa contributiva à modalidade de contratação, a chamada «taxa de rotatividade», não é método eficaz para combater a precariedade e pode servir para justificar tolerância com um modelo baseado na regressão das condições de vida e de trabalho.
«Quem, como eles, não aceitaria pagar mais um pouquinho da TSU para, em contrapartida, ganhar o muito que é roubado em salários, em aumento dos horários e dos ritmos de trabalho, na redução de direitos e das más condições de trabalho que, em geral, são impostas aos trabalhadores precários?»
O aumento da TSU não pode servir para legitimar a contratação precária de trabalhadores, o que se impõe é prosseguir a luta pela erradicação deste flagelo que ameaça permanentemente o direito de viver decentemente e de projectar um futuro digno, assente no emprego estável e no trabalho com direitos, livre do empobrecimento e da exploração desenfreada.
É muita ingenuidade pensar que os patrões se opõem a esta medida. É claro, representarão mais uma vez o número habitual, fingem dramatizar para obter o melhor negócio, porque negócio é a única linguagem que sabem falar. Principalmente os grandes grupos económicos, que recorrem massivamente à contratação de trabalho precário, têm a expectativa de não serem importunados e poderem continuar a manter elevadas taxas de precariedade, isto é, de exploração.
Quem, como eles, não aceitaria pagar mais um pouquinho da TSU para, em contrapartida, ganhar o muito que é roubado em salários, em aumento dos horários e dos ritmos de trabalho, na redução de direitos e das más condições de trabalho que, em geral, são impostas aos trabalhadores precários?
Se a moda pegasse (por exemplo: aumentar a TSU como meio de legitimar as ilegalidades e arbitrariedades dos patrões no atraso no pagamento de salários; legitimar o uso de práticas discriminatórias; legitimar o incumprimento de quaisquer normas contratuais, e por aí fora…), a legislação laboral protectora de direitos e a contratação colectiva deixariam de ter qualquer utilidade2.
Por outro lado, é profundamente condenável que o Governo considere a possibilidade de baixar a TSU para as empresas com trabalhadores efectivos. Qual a lógica de premiar o simples cumprimento da lei? Ainda para mais, pagando com dinheiro que deixaria de entrar na Segurança Social, quer dizer, dinheiro dos trabalhadores. Então, porque não premiar, de um modo geral, as pessoas que cumprem as suas obrigações? A começar pelos trabalhadores, naturalmente.
E não estará o Governo com tal proposta a ensaiar medida idêntica, num cenário de reprise para a discussão que aí vem sobre o SMN, retomando a proposta do ano passado que previa a redução da TSU para os patrões? Como se sabe, tal medida foi aprovada na concertação, com a oposição da CGTP-IN, mas foi posteriormente revogada porque a Assembleia da República decidiu, e bem, rejeitar a patranha.
Enfim, tanto o aumento da TSU para legitimar a precariedade laboral, como a sua descida para premiar aquilo que são as obrigações patronais, convergem no mesmo objectivo de beneficiar os patrões, principalmente as grandes empresas.
Sabe-se, de ciência certa, que quando se evita dar resposta aos problemas e se envereda por atitudes voluntaristas, medidas irreflectidas ou por outras razões mais ou menos obscuras, o mais certo é que para além de não se atingirem os objectivos que são necessários, ainda se acrescentarão novos problemas aos já existentes. Por conseguinte, responsabilidade e sensatez é o que se exige nesta matéria.
A precariedade combate-se com melhor legislação e o cumprimento da contratação colectiva. Com mais fiscalização e sancionamento.
A precariedade laboral sempre foi uma constante em todas as etapas da evolução do sistema capitalista. Com o pretexto da chamada globalização e o argumento do combate à «crise» (quando a crise é a do próprio sistema capitalista, incapaz de dar resposta aos problemas da humanidade), produziram-se nas últimas décadas sucessivos pacotes laborais, impôs-se um código do trabalho menos protector dos direitos dos trabalhadores, deu-se continuidade ao aprofundamento de modelos neoliberais, genericamente designados de «flexibilização laboral», introduziu-se o mecanismo da caducidade das convenções colectivas, cujos efeitos práticos se fazem sentir na paralisação de uma parte significativa da contratação colectiva.
As declarações de responsáveis governamentais a subscreverem as posições das confederações patronais, para quem «mais vale ter trabalho precário do que desemprego», mostra o cinismo de quem não tem nenhuma vontade de acabar definitivamente com este flagelo.
Nos termos da Constituição, o contrato de trabalho permanente é a regra normal de contratação, em obediência ao princípio da segurança no emprego.
A solução não está, portanto, na manipulação da TSU para legitimar a contratação e a prestação de trabalho precário. A solução passa por fazer cumprir o preceito constitucional, o que impõe, desde logo, a revogação das disposições legais que sejam contrárias à Lei Fundamental.
Passa, também, por dotar a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) dos meios financeiros, técnicos e humanos necessários a uma permanente fiscalização do cumprimento da legalidade nas empresas, com agravamento das sanções ao seu incumprimento.
Passa também pela fiscalização sobre as empresas de trabalho temporário, actividade que tem crescido desmesuradamente e que constitui, em si mesmo, um indicador de como o trabalho precário tem vindo a proliferar.
Passa, finalmente, por serem adoptadas medidas políticas e legislativas dirigidas à criação de empregos de qualidade, com consideração de três dimensões principais: i) a prestação do trabalho, significando que não basta só ter emprego, mas ganhar o suficiente para si e a sua família, não ter horários longos nem horários incompatíveis com a conciliação da vida profissional com a vida familiar; ii) proteger os direitos no trabalho, compreendendo a efectiva realização dos direitos, incluindo o direito de negociação e contratação colectiva e da intervenção sindical no local de trabalho; iii) a segurança no trabalho, contra despedimentos abusivos, bem como a garantia da formação profissional e da protecção no campo da segurança e saúde no trabalho.
Concluindo, a solução passa por assegurar estabilidade e protecção no emprego e erradicar de vez a possibilidade de ser imposto a um trabalhador que, no momento da sua contratação, «assine também o seu despedimento».
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- A CGTP-IN não assinou aquele acordo quer porque se opôs ao aumento da TSU, a troco da facilitação da precariedade concedida às empresas, quer porque o acordo comportava um vasto conjunto de malfeitorias, consubstanciando um dos maiores ataques perpetrados contra os trabalhadores depois da Revolução de Abril, cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir. Para além das consequências imediatas sobre as condições de trabalho, aquele acordo também marcou um processo de revisões sucessivas do código do trabalho, em que se destacam o aprofundamento da caducidade das convenções colectivas, a revogação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, a desregulamentação dos horários de trabalho, a facilitação e simplificação dos processos de despedimento e a redução das indemnizações por despedimento sem justa causa, entre outras alterações prejudicais aos trabalhadores.
- É preocupante a insensatez que observamos em certas posições que são tomadas relativamente a questões laborais. Ainda há pouco tempo atrás foi aqui noticiada a apresentação na AR de projectos de lei do BE, PS e PAN sobre um pretenso «direito» de «desconexão profissional» do trabalhador quando está no seu período de descanso, como se não estivesse já tipificada na lei, constituindo uma grave legalidade, a violação dos tempos de descanso por parte das entidades patronais. Tal como é dito na notícia, aquelas iniciativas podem parecer bem-intencionadas, mas são iniquas, e sobretudo são perigosas porque transmitem a ideia, falsa, de que hoje é permitido aos patrões intrometerem-se no tempo de descanso dos trabalhadores.
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[Artigo tirado do sitio web portugués Abril Abril, do 22 de novembro de 2017]