Portugal: O que devemos aprender com o fim da Geringonça

Carlos Hortmann - 07 Mar 2022

A derrota da esquerda radical nas eleições portuguesas de 2022 deixa uma lição: a classe trabalhadora e suas organizações não podem ficar reféns das disputas eleitorais, nem de suas armadilhas táticas e falácias midiáticas que manipulam o medo para mobilizar votos. Precisamos estimular o imaginário real de que é possível, urgente e necessário à superação do capitalismo

 As eleições portuguesas do último dia 30 de janeiro ensinam uma grande lição para as esquerdas mundiais. Para além da vitória do Partido Socialista com 119 assentos parlamentares, que lhe valeu a maioria absoluta do Parlamento, houve um crescimento acentuado da direita neofascista. O partido Chega, um partido de extrema direita típico, passou de 1 para 12 deputados; a Iniciativa Liberal (IL), um partido ultraliberal semelhante ao Novo no Brasil, conseguiu mais 7 cadeiras, totalizando 8 deputados, se colocando, respectivamente, como terceira e quarta força política no país.

 No campo da esquerda radical, houve uma derrota eleitoral bastante forte e grave para a classe trabalhadora. O Bloco de Esquerda (BE) caiu de 19 para apenas 5 deputados. Já a Coligação Democrática Unitária (CDU, a coalizão que une o Partido Comunista mais Os Verdes) foi de 12 para 6 deputados.

 Nesse caso, os Verdes foram mais penalizados, pois ficaram sem nenhum assento parlamentar, igua ao CDS-PP, partido de direita ligado ao catolicismo que também ficou sem numa cadeira. Esse cenário põe fim definitivamente à experiência da “Geringonça“, marcando o final de um ciclo iniciado em 2015.

Nasce a Geringonça

 Na noite do dia quatro de outubro de 2015, o secretário-geral do Partido Socialista (PS) à época, António Costa reconhece a vitória da coligação de direita Portugal à Frente (PaF), composta pelo Partido Social Democrata (PSD) e Partido do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP). No jargão futebolístico, ele “jogou a toalha”. Talvez cedo demais. Logo, o Partido Comunista Português (PCP) contradisse isso ao dizer que “o PS só não formará governo se não quiser”, pois, somando os votos do PCP, Partido Ecologista (“Os Verdes”) e BE aos do PS havia uma maioria parlamentar que impedia a direita de formar governo e abria espaço para um governo minoritário do PS — que teria o Orçamento do Estado (OE) viabilizado pelos três partidos.

 O então presidente da república, Aníbal Cavaco Silva (um notório anticomunista, que já serviu como premiê) exigiu compromissos escritos do PS com cada um dos partidos, como uma forma de “garantir a governabilidade” de uma gestão minoritária. Em Portugal nunca houve, efetivamente, a coligação de “esquerda”, denominada pejorativamente de Geringonça, como comumente muitos políticos e pessoas tentaram vender no Brasil – isto é, o que ocorreu foi uma tática político-parlamentar que possibilitou um governo minoritário de caráter social-liberal do PS liderado por António Costa.

 O Partido Socialista segue fielmente a cartilha neoliberal (fiscalista) imposta pela União Europeia, aquilo que Nancy Fraser vai denominar de “neoliberalismo progressista” – resumidamente, não é um partido de esquerda apesar do nome. Vale destacar também, que foi um partido decisivo na derrota da Revolução Socialista em Portugal em 1975. 

 O acordo imposto por Cavaco Silva proporcionou ao primeiro-ministro António Costa uma tática política centrada no medo, quer dizer, operava politicamente dessa forma: “vocês ‘parceiros’ de esquerda não podem exigir muito e aceitar as nossas condições, pois, se deixarem cair o governo, voltaria uma direita ainda mais violenta contra a classe trabalhadora”. Portanto, como um arguto estrategista político, Costa empurrava à esquerda constantemente para as cordas. Com o apoio dado pelo atual presidente Marcelo Rebelo de Sousa, de centro-direita, e apesar de um governo minoritário, o PS agia com a petulância de uma maioria parlamentar absoluta.

 Dentro da conjuntura do fiscalismo neoliberal das “contas certas” evocado pelo PS, a ligeira força negocial junto ao governo que à esquerda detinha, a classe trabalhadora (nacionais e imigrantes) em Portugal conseguiu algumas conquistas mínimas, como a recuperação dos rendimentos (salários), transportes públicos mais baratos e poucochinhos (palavra que o Costa gosta muito) aumentos nas aposentadorias dos pensionistas. Entretanto, nem PCP e nem BE conseguiram capitalizar politicamente, ou seja, mostrar à população que tais melhorias eram fruto das forças de esquerda. (sem esquecer de referir que ocorreu um enfraquecimento das mobilizações populares e sindicais dada a tática imposta por Costa em consonância com o patronato nacional e estrangeiro).

 Nas eleições legislativas de outubro de 2019, quem conseguiu capitalizar em votos essas poucas melhorias para a classe trabalhadora foram os “socialistas”, ao ponto de ficar a 8 assentos parlamentares para ter maioria absoluta. Aos serviços dos interesses da classe dominante, António Costa revigorado com os resultados eleitorais reconfigurou a sua tática política como forma de encostar a esquerda ainda mais nas cordas.

 Costa foi indicado primeiro-ministro sem aqueles acordos escritos – onde alguns compromissos pró-classe trabalhadora foram assumidos pelo PS. A tática a partir dali seria negociar a cada orçamento, a fim de ter que ceder cada vez menos aos partidos de esquerda. Por outro lado, buscava intensificar a mobilização de um preciso afeto político numa sociedade estruturada a partir do conflito: o medo. O medo de que o governo caísse e houvesse uma crise política. O Orçamento de 2020 do governo minoritário do PS foi aprovado com a abstenção do BE, PCP, Verdes e outros. 

 Com o estourar da pandemia da Covid-19, a conjuntura se tornou ainda mais complexa, caótica e a necessidade de um orçamento suplementar já dava pistas do que viria acontecer mais tarde. O PCP votou contra o Orçamento suplmentar de 2020, pois, dentro do quadro pandêmico, considerando as necessidades de confinamento social, a classe trabalhadora e as micro e pequenas empresas ficaram à mercê de salários e subsídios do Estado como forma de sobreviver.

 Esses subsídios não eram suficientes para o tamanho da tragédia económica e sanitária que nos abalava. A falta de investimento no Sistema Nacional de Saúde (SNS) ficou evidente diante do agravamento da pandemia. Os trabalhadores autônomos informais, como os uberizados, ficaram numa situação de brutal desamparo.      

 

No esteio do acúmulo das crises econômica, sanitária e social, a intensidade da luta de classes cresce fortemente, o número de atos de contestações também aumenta, assim como o acirramento político-parlamentar. Para o Orçamento de 2021 o BE decide votar contra, embora o PCP dessa vez resolveu se abster, o que na prática viabilizou a aprovação do Orçamento do governo “socialista”. Nesse momento, Costa colocou em marcha a tática de apontar ao BE e dizer que eles tinham “votado com a direita no veto ao Orçamento”.

 Em outubro de 2021, os “socialistas” perceberam que a crise social está ficando cada vez mais intensa, dado o empobrecimento e o aumento dos preços de bens essenciais. Os partidos de esquerda não tinham mais margem para quaisquer concessões. O PCP coloca na mesa de negociações o aumento do salário mínimo para 850 euros (e depois diminuíram para 800 euros); o fim da caducidade dos contratos coletivos de trabalho; creches gratuitas (visto que em Portugal não há creches públicas); mais faixas para imposto de renda (IRE) e afins. Essas medidas mexeriam na correlação de forças e na relação entre capital e o trabalho, ou seja, na luta de classes.

 No decorrer das negociações orçamentárias, o presidente da República, um aliado de primeira hora de Costa, afirmou que se o orçamento fosse vetado, haveria novas eleições. Essa fala soou como música para António Costa que almejava com a dissolução do Parlamento, a possibilidade de obter a tão sonhada maioria absoluta.

Conjuntura

 António Costa enxergou nas eleições antecipadas, impostas pelo presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, a sua chance de fazer maioria absoluta parlamentar, algo raro no sistema político português. Dados os resultados, ele parece ter acertado na estratégia eleitoral. Mas quais foram as táticas efetivas?    

 Podemos elencar três principais “discursos” que o PS se concentrou em repetir até massificar eles, para atingir os seus objetivos.

 O primeiro deles é que o Orçamento de Estado 2022 vetado com os votos do PCP, PEV, BE e toda à direita (PSD, CDS-PP, CHEGA, IL) era o orçamento “mais à esquerda” que algum dia Portugal já teve; contudo, os dirigentes “socialistas” não enfatizaram o fato desse Orçamento já contar com os fundos europeus do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o que proporcionava recursos extra. Porém, quase que a totalidade do dinheiro (injeção de liquidez) iria para os grandes monopólios econômicos portugueses ou transnacionais. O governo do PS desistiu de recuperar os rendimentos da classe trabalhadora, isto é, proporcionar um aumento salarial substancial e que consiga acompanhar a pressão inflacionária, que atinge a todos quando vão ao supermercado, pagar a conta de gás e etc.

 A suposta tese de que esse seria um Orçamento “mais esquerda” foi alimentada pelo ex-líder do PSD e comentador político de um dos telejornais mais assistido em Portugal, Marques Mendes, aparentemente “opositor” de António Costa. Quando o mesmo disse que seria um “suicídio eleitoral para o PCP” não viabilizar o orçamento colocado pelo PS.

 A outra farsa que António Costa repetiu é que o PEV, BE e PCP foram irresponsáveis com o país, ao provocarem uma “crise política” quando votaram contra o Orçamento de 2022. O primeiro-ministro e o seu partido não fizeram tudo isso sozinhos, foram apoiados de forma substantiva nas redes sociais, pois se dizia por todo lado: “a esquerda não quis compreender o fato de estarmos saindo de uma pandemia, deveriam ter aprovado o Orçamento na generalidade e ‘aprimorado’ na especialidade. Os ‘portugueses não queriam eleições’ […] e afins”.

 Esse terceiro leitmotiv levado a cabo pelo PS, de que pesquisas indicavam a rejeição do eleitorado a novas eleições, foi decisivo para o voto útil. Não é possível compreender a força do mesmo, sem sinalizar o papel potencializador que tiveram as pesquisas na última semana eleitoral, já que segundo todos os institutos de pesquisa, sublinho, todos, apontavam para um empate técnico entre o PS e o PSD. Isto é, as pesquisas de opinião contribuíram para o voto útil e por consequência a maioria absoluta do PS.

 Logo, o suposto empate técnico fez António Costa e a máquina do seu partido encampassem o discurso de que uma vitória do PSD poderia abrir espaço para uma “Geringonça de direita”, juntamente com o partido fascista português Chega. A tática de espalhar o medo contra o fortalecimento das ideias e projetos políticos fascistas e reacionárias em Portugal, mobilizou a memória das lutas antifascistas do período salazarista e da Guerra Colonial. A simples sugestão do medo fascista reacendeu, de forma mais intensa, as memórias de luta e resistência ao fascismo. Essa tática eleitoral se converteu em voto útil para o PS.

 Sobre a maioria parlamentar absoluta do PS temos dois elementos centrais: (a) os 380 mil votos que ele teve a mais do que nas eleições legislativa de 2019 deve-se, predominantemente, a eleitores do BE, PCP, PEV e PAN que praticaram voto útil – além de que, Costa se beneficiou do ligeiro aumento na participação eleitoral; b) o forte discurso fiscalista e austericida pelo discurso de “contas certas”, equivalente português da responsabilidade fiscal, agradando muito a classe dominante.

 Um dos rostos mais visíveis do empresariado lusitano, António Saraiva disse que estava contente com a maioria absoluta do PS, visto que assim António Costa deixava de estar “refém” da esquerda parlamentar. A posição dos banqueiros também não foi diferente: “agradados com a maioria absoluta”. As “agências de risco”, a serviço do imperialismo estadunidense, também parecem felicitar a maioria absoluta do PS. 

 O crescimento da direita reacionária e neoliberal, por um lado, é motivo de preocupação, análises rigorosas da conjuntura e mudanças na linha política de enfrentamento dessa crescente “nova-velha” extrema direita, por parte de todos os militantes antifascistas. Por outro, não há razão para desespero e medos irracionais. Nesse caso, essas forças sociais que se expressaram em votos no Chega e IL sempre estiveram presentes na sociedade portuguesa, só que votavam substancialmente no “falecido” CDS-PP  – e não conseguiu eleger nenhum deputado; uma pequena parte no PSD de Pedro Passos Coelho e nas abstenções. 

 Existe uma forte memória antifascista em Portugal, cuja origem está nos 48 anos lutas contra o salazarismo que moderou a disputa política portuguesa. Todavia, a representação parlamentar dessa direita reacionária (e a “alt right”) – sem o cinismo característico da “direita moderada” – abre espaço para se fazerem ouvir com mais amplitude ideias e discursos racistas, xenófobos, anti-imigração, machistas, homofóbicos, individualismos e etc.

As raízes da crise e da contradição

 Alguns fatores contribuíram para uma derrota eleitoral da CDU (coalizão que une comunistas e verdes) e o BE, como por exemplo, o voto útil estimulado pelas pesquisas eleitorais. Porém, para termos uma visão mais alargada é necessário voltarmos para 2015, para entendermos a tática adotada pelo campo da esquerda após decidirem viabilizar um governo minoritário do PS – no entanto, sem ter qualquer participação no conselho de ministros de Estado. A “nova fase na política nacional” apresenta uma dupla face contraditória; por um lado, os partidos tinham mais forças políticas e institucionais para lutarem junto ao governo de António Costa – isto é, recuperarem os poucos mas importantes direitos arrancados do povo trabalhador pela classe dominante lusitana e europeia na época da Troika, a famigerada união de Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia, que aplicou as políticas de austeridade na Europa

 Por outro lado, as dinâmicas sociopolíticas na época foram impostas pelo PS, ou seja, conseguiram empurrar para o colo da esquerda parlamentar e social o medo de cair o governo e a “direita voltar ao governo”. Como consequência, tivemos um arrefecimento das lutas de massas  e greves gerais que marcaram 2012-2013 em Portugal; nesses anos de crise social de alta intensidade, se possibilitou o aumento da força do bloco social no campo da esquerda e sindical e, se converteram também em força constitutiva do bloco eleitoral que permitiu evitar mais quatro anos de um governo PSD/CDS-PP.

 Do ponto de vista tático foi um erro a esquerda radical ter carregado o medo para seu lado, uma vez que era o momento de avançar na luta de classes em Portugal e colocar o medo nas mãos do PS.

 

Os triunfos históricos do povo trabalhador só foram possíveis quando a burguesia e os seus representantes políticos tiveram medo da luta, e da organização, da classe que vive do trabalho. Há algo que precisamos entender, na luta de classes o medo é um afeto político decisivo no avanço das conquistas – e tomada do poder – daqueles que são explorados, oprimidos e expropriados todos os dias por aqueles 5% da classe dominante que concentram mais de 42% da riqueza em Portugal. Nesse sentido, o enfraquecimento das forças de esquerda no âmbito institucional do regime político liberal-capitalista, deslocará o campo de batalhas da luta de classes, essencialmente, para a sociedade civil, e assim, teremos uma oportunidade de realizar um trabalho constante e de longo prazo com objetivo de mobilização da classe para as lutas de massas – onde reside o verdadeiro poder do povo trabalhador, pois, como bem alertou Marta Harnecker: “se o parlamento coloca o regime em perigo, o regime fecha o parlamento”.

 

Um ponto crucial para entendermos não só a conjuntura lusitana, mas o ocidente na sua generalidade, é o que Mészáros denominou de “rachaduras” no regime político vigente: o alto índice de abstenção nos processos eleitorais. Os comunistas e anticapitalistas não devem querer remendar essa parede “rachada”, mas sim, deitá-la abaixo para construir uma outra parede (nova sociedade) que seja substantivamente democrática. O número crescente e sustentado da abstenção em Portugal desde 1975 é um “sintoma” claro de que o povo trabalhador não acredita no regime político imposto pela contrarrevolução de 25 de novembro de 1975 – e os “socialistas” são também representantes políticos das forças contrarrevolucionárias e anticomunistas lusitanas. Em outras palavras, a classe trabalhadora não acredita nesse regime político que reduz democracia ao processo eleitoral de colocar um voto nas urnas, dado que os seus interesses de classes são antagônicos daqueles que exercem e detêm o poder.

 

Quem tem se aproveitado, oportunisticamente e somente na aparência, do discurso anti-sistémico é à direita reacionária, uma vez que não existe espaço vazio na política. Só mudaremos essa quadra histórica se unirmos uma prática na luta anticapitalista com um discurso profundamente anti-sistémico, que estimule um imaginário real de que é possível, urgente e necessário à superação do capitalismo.

 

Não podemos esquecer das palavras de Lênin do texto “A situação atual da Rússia e as táticas do partido operário” de 1906, visto que o líder da Revolução de Outubro já nos deixou alguns ensinamentos: “É preciso aproveitar os pequenos resquícios de legalidade [no Estado capitalista] ainda existentes para ampliar a propaganda, a agitação e a organização, mas sem se enganar com respeito a duração e a importância desses meios.”

 

[Artigo tirado da edición brasileira de Jacobin, do 2 de marzo de 2022]